segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Shunga: Sex and Pleasure in Japanese Art


Até 5 de janeiro o British Museum, em Londres, apresenta a exposição "Shunga: Sex and Pleasure in Japanese Art". Pude comprovar que é uma exposição fantástica, que torna o erótico mainstream, visto sem pudor nem culpa num dos melhores museus do mundo. O British já possuía algumas obras deste género, mas para esta exposição conseguiu reunir muitas mais, vindas de todas as partes do mundo.

Como muitos outros aspectos da sociedade japonesa, esta arte começou por ser uma influência chinesa, da qual os japoneses se apropriaram e tornaram sua com distinção. Originalmente os chineses referiam-se às suas pinturas eróticas como chun-hua e estas existiam já desde o século VI. Mas enquanto na China elas se moviam num mundo aristocrático e com um propósito didático e não hedonista, maioritariamente manuais sexuais dedicados a homens que pretendiam conservar a sua vitalidade e melhorar a sua saúde, os japoneses estavam sobretudo preocupados com o prazer e, de certa forma, com o alcance de satisfação sexual através da arte.


Shunga, donde muito provavelmente deriva a nossa palavra chunga, é uma arte japonesa, que apesar de remontar ao período Heian (século VIII a XII) se desenvolveu sobretudo com a corrente do ukiyo-e e o seu "mundo flutuante" (por volta do século XVII, já no período Tokugawa) mas vocacionada para a representação de cenas eróticas. Ordinárias, para o padrão daqueles primeiros visitantes portugueses (e outros europeus) que lhes puseram os olhos em cima. O que acontece é que na Ásia o acto sexual era visto de uma forma normal, passível de ser retratado em pinturas constantes de livros, almanaques médicos ou de outras publicações de auto-ajuda. 

Os livros onde estas cenas apareciam eram comprados por todas as classes e tinham diversos objectivos, que não só o de proporcionar prazer a quem os visse. Tinham igualmente um carácter educativo, de mostrar aos recém-casados como as cenas de alcova decorriam. E mostrá-lo tanto a homens como mulheres. O que vemos é que estas pinturas eróticas, a maioria delas apresentadas em livros, tinham para além de um carácter prazeroso e didático, também um conteúdo político, satírico e cheio de humor. Sempre sem perder a sua qualidade artística.


Atentemos a grande cena do grande Hokusai com o polvo grande a copular com a mulher, enquanto o polvo pequenino envolve os seus lábios, isto é, boca. 
Outro grande, como Utamaro, foi vítima de censura política no período Tokugawa por não ter evitado nomear os grandes enquanto os satirizava.
Existia ainda a sátira de obras de literatura médica e de clássicos, recriando-se novas versões com o recurso ao imaginário shunga. Na exposição podemos ver ambas as obras, a original e a imaginativa e humorada recriação.
Era tão banal que quase todos os artistas dos séculos XVII e XVIII, incluindo os melhores, se dedicaram à arte shunga. E com um refinamento tal, que as obras presentes na exposição do British nos encantam totalmente. 

As pinturas mostram em detalhe órgãos genitais, quer os dele quer os dela, absolutamente exagerados. Poucas mostram os casais completamente nus. No ocidente a nudez era uma forma, discreta de se aludir ao sexo. Já no Japão, a representação de figuras muito vestidas enquanto praticam os actos sexuais mostra que a nudez nunca foi aí encarada como erótica e mostra ainda que a preocupação dos artísticas era também a técnica ao retratarem as vestes, muitas vezes de forma exuberante, mas sempre definidoras da classe social dos sujeitos em causa.
As cenas são maioritariamente de homens e mulheres em pares, mas existem alguns trios, outras com espectadoras discretas atrás de cortinas ou biombos, outras homossexuais, incluindo duas mulheres com brinquedos. Na esmagadora quase totalidade as cenas são de sexo consensual. E as mulheres aparecem, tal como os homens, a gostar do acto.

A arte shunga acabou por decair à medida que os ocidentais foram forçando a abertura do Japão, durante a segunda metade do século XIX, e trouxeram consigo os seus padrões morais e artísticos de modernidade, os quais viam esta arte como obscena. Os próprios lideres japoneses, preocupados agora em seguir os passos da modernidade ocidental, encararam esta arte como obsoleta, parte das tradições que se queriam abater. Felizmente, no entanto, a arte shunga chegou aos nossos tempos e hoje podemos apreciá-la por inteiro, seja com os propósitos que os japoneses de séculos passados usaram, seja apenas para aplaudir e emocionarmo-nos com a variedade de obras artísticas que estes nos legaram.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Direitos Humanos


Sobre a matéria dos direitos humanos, mas não só, existe um livro português que merece muito a pena ser lido: A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen, de Raquel Vaz Pinto.
Podia ser, mas não é nesse livro que me baseio para escrever o corrente post, antes noutras leituras indicadas pelo professor da cadeira de Sistemas Políticos Comparados da Ásia Contemporânea.
Os direitos humanos têm como origem directa as atrocidades da II Grande Guerra Mundial, as quais levaram a um compromisso internacional para o conceito e a prática dos direitos humanos universais. Assim, em 1948 a ONU adoptou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual servia principalmente como um manifesto. 
Há que ter em conta, porém, que já antes, no século XVII, os europeus vinham colocando tanta ênfase nos direitos como nos deveres e que a questão tem a ver com a modernidade e com a emergência da classe média, a qual encontrou nos direitos humanos argumentos contra os privilégios aristocráticos. 
Podemos, assim, considerar, no que aos direitos humanos diz respeito, que a sua mãe é a moral liberal e a filosofia política (ou seja, o iluminismo francês e o pensamento liberal inglês) e o seu pai a lei internacional e a revolução (a revolução republicana francesa e a primeira revolução da independência americana).
Estas ideias sobre estes direitos emergiram, foram criados ou descobertos primeiro na Europa, não porque esta fosse mais virtuosamente superior, mas porque os estados modernos e o capitalismo apareceu primeiro aqui.
Ainda no plano teórico, encontramos duas posições relativamente aos direitos humanos. Uma universalista, que defende que os direitos humanos são derivados da essência humana por si, ou seja, cada pessoa tem direitos como indivíduo. Outra relativista, que rejeita as teses universalistas como sendo naives, faltando-lhes validade empírica, sendo ahistóricas e, pior, culturalmente imperialistas. Dizem que, historicamente, as diferentes sociedades tiveram diferentes noções de direitos, e que os direitos individuais não são dados por Deus ou evidentes por si, antes são uma construção histórica, não sendo, por isso, universais, mas valores ocidentais particulares mascarados de conceitos universais.
Foi no contexto de Francis Fukuyama, declarando que havíamos alcançado o "fim da história" com a vitória da democracia, mercados livres e ideais ocidentais, e de Samuel Huntington, com a sua tese de que o mundo estava a entrar num "choque de civilizações", que alguns intelectuais e governos na Ásia Oriental, Rússia e Médio Oriente começaram a subscrever a tese relativista.


É aqui que entra a Ásia, em especial a tese dos "valores asiáticos". Os valores asiáticos valorizam a família sobre o indivíduo, a harmonia sobre o conflito, a disciplina e a deferência para com a autoridade sobre a auto-afirmação, o bem estar sobre a liberdade.
A Declaração de Banguecoque, de 1993, veio desafiar a interpretação dominante da comunidade dos direitos humanos ao dizer que a sua aplicação tem de ser considerada no contexto de um processo dinâmico e crescente de normas internacionais, tendo em conta o significado das particularidades nacionais e regionais de backgrounds históricos, culturais e religiosos. Ou seja, reclama que as circunstâncias particulares de uma política têm de ser levadas em conta na forma de determinar como um particular direito é aplicado. Diferentes circunstâncias implicarão diferentes preocupações morais. 
E, depois, vem a questão do problema com a palavra "direitos" e "humano". Na China não existe um equivalente exacto à palavra "direitos" e mesmo a palavra "humanos" é traduzida de diferentes formas. Por outro lado, os ensinamentos confucionistas (matriz que influencia os países da Ásia Oriental) acerca das relações morais enfatizam uma hierarquia vertical na sociedade e tendem a ver a pessoa no contexto de uma rede social em vez de uma individual. Ainda, o conceito de lei também é entendido de forma diferente. A sociedade confucionista era governada mais por formas de decoro e até hoje os chineses receiam a lei porque ela vinha de um instrumento arbitrário nas mãos de governantes. Assim, ao mesmo tempo que os chineses conseguiram articular desde cedo ideias sobre dignidade humana e igualdade, não conseguiram estabelecer um sistema político que as protegesse, precisamente por o poder estar centralizado nas mãos do monarca em vez de ser partilhado com outros. Nestas circunstâncias, a doutrina confucionista de governo benevolente desde cima era insuficiente para garantir os direitos individuais abaixo.
Não obstante, o governo chinês elaborou em 1991 o White Paper em que declara explicitamente ser a favor dos direitos humanos, os quais estão implícitos na sua Constituição. 
Mais, o apoio a certos direitos humanos pode ser encontrado nos escritos de vários pensadores confucionistas ao longo dos tempos, muitos países da Ásia Oriental foram rápidos a aprovar os direitos humanos e a reclamá-los como seus e muitos países influenciados pelo confucionismo demonstraram que a observância às práticas democráticas e direitos humanos não são incompatíveis e podem ser adaptados.
Ou seja, questões de soberania, desenvolvimento - note-se que a China coloca mais ênfase nos direitos económicos e sociais, com o argumento de que o país se deve focar nas questões de desenvolvimento económico, sobrevivência e subsistência, ao contrário dos ocidentais que colocam mais ênfase nos direitos civis e políticos - e concepções tradicionais de ordem social não absolvem os governos asiáticos de implementar do direitos humanos reconhecidos. Há que ter em conta que nós temos a capacidade para criar e mudar a nossa cultura e que a diversidade cultural é um valor em si mesmo. Os direitos humanos internacionais não obrigam ou sequer encorajam os asiáticos a prescindir da sua cultura. No entanto, os direitos humanos também dão poder às pessoas para modificar ou rejeitar partes da sua cultura tradicional. A Índia é um bom exemplo e a sua Constituição proíbe muitas práticas tradicionais e religiosas, como o discriminatório e degradante tratamento das castas mais baixas.


E depois temos o (não) papel do Japão nesta matéria de direitos humanos. Por-se-ia esperar que o país pudesse assumir um papel de líder em promover e proteger os direitos humanos na região. No entanto, a prática do proselitismo é estranha aos japoneses - a modéstia é um alto valor. Também não são legalistas, e a diplomacia para eles é somente bilateral. E, mais decisivo, talvez, a culpa da guerra e dificuldades em lidar com isso e com o estatuto de antigo colonizador faz com que o Japão não assuma o papel de líder na Ásia, particularmente em áreas onde a ética e a moral estão envolvidas.
À laia de conclusão, alguns factores que explicam a atitude algo negativa para com os direitos humanos. Desde logo, a Ásia é vasta e diversa e carece de uma base comum que faz com que seja difícil de aceitar noções comuns de direitos humanos. Excepto pela sharia para o mundo muçulmano, a cultura asiática não tem sido tão legalista como a europeia e americana. Muitos governos têm sido autoritários e opressivos. Uma baixa literacia e conhecimentos insuficientes dos direitos humanos fundamentais têm mantido muitos alheios a um envolvimento na luta pelos direitos. A pobreza da maior parte das nações faz com que a primeira preocupação dos lideres seja prover a subsistência e melhorar a situação material, mantendo a integridade nacional. Por fim, o apoio dado pelas superpotências durante a guerra fria a governos autoritários e opressivos ajudou a que os governos não olhassem para a importância dos direitos humanos.




sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Peito Grande, Ancas Largas


Li Mo Yan, o Prémio Nobel da Literatura de 2012. O eleito foi o único livro do chinês que está traduzido em português, o "Peito Grande, Ancas Largas", precisamente aquele que o autor disse ser a sua obra obrigatória.
São 600 longas páginas, algumas delas pareceram-me a mais, outras delas entusiasmastes. 
Conta a história da família Shangguan, em especial da Mãe que deu à luz 8 filhas mais 1 filho, todos sem serem do seu marido estéril, e os criou a todos e ainda a netos e crianças que lhe iam deixando. 
E essa história desenrola-se ao longo da própria história da China do último século: a invasão japonesa no século XX, a grande fome dos tempos de Mao - o grande salto em frente e a revolução cultural - e a ascensão de uns quantos oportunistas durante o regime comunista que sobreviveu a Mao. Muito drama, provação e ironia à mistura.
É uma espécie de realismo mágico, tão ao jeito dos latino-americanos, com cenas estrambólicas no caminho, como os sonhos do único filho varão, Jintong, obcecado por seios e viciado no seu leite até tarde na sua adolescência. Estas e outras marcas de erotismo que se pensa não esperar encontrar em livros de um chinês ainda assim bem visto pelo governo.

Mongólia


A Bernardo Carvalho, escritor brasileiro, foi atribuída uma Bolsa de Criação Literária pela Fundação Oriente para passar um tempo num local do oriente à sua escolha. Escolheu a Mongólia e o resultado foi o livro de mesmo nome, publicado em 2003.
A sua obra traz-nos um misto de narrativa de viagem com uma história bem urdida, com final surpreendente. Os desertos da Mongólia são objecto de descrição apaixonada, fazendo-nos desejar arrumar as malas e ir já para lá. Ou então é o meu gosto de viajar, de preferência por terras mais inóspitas. Mas o autor não deixa de ir caracterizando aqui e ali algo da sociedade contemporânea do país, embora a acção do seu romance se passe no seu interior.
Leitura obrigatória.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O Caminho Para Casa


Mais um (bom) filme chinês para se ver. 
De Zhang Yimou, o cineasta do regime que realizou não só a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, mas também Herói, O Segredo dos Punhais Voadores, Esposas e Concubinas e o soberbo Viver (ver post aqui http://estudanteasiatica.blogspot.pt/2011/09/huozhe-viver.html), este O Caminho Para Casa (Wo de fu qin mu qin) conta a história de amor de um casal de tempos que já lá vão. 
Vivem o primeiro casamento por amor daquela aldeia, indo contra a tradição dos casamentos arranjados. Mas o pretexto do filme para se contar a sua história de amor pouco tradicional é a insistência da agora viúva em querer cumprir a tradição de trazer o seu marido morto de volta para casa (havia morrido longe, fora da aldeia) em cortejo a pé para que o seu espírito se pudesse lembrar do caminho de casa.

Barragem das Três Gargantas


A maior barragem do mundo, a das Três Gargantas, fica na China e foi uma obra de engenharia à medida do tamanho e pujança do país, a qual envolveu a imersão de muitas povoações e o deslocamento em massa dos seus habitantes. Diz-se que foram submergidas 13 cidades, 140 vilas e 1350 aldeias, e realojadas 1,3 milhões de pessoas.
Existem pelo menos dois filmes mais do que muito interessantes sobre o acontecimento: Up The Yangtze, de 2007, de um chinês de segunda geração do Canadá, e Sanxia Haoren - Natureza Morta, de 2006, de Jia Zhangke, o qual já nos tem acostumado a filmes superiores.



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Orientalismo

Chegada ao terceiro ano do curso de Estudos Asiáticos teve de ser uma cadeira de opção livre (ou seja, de outro curso), a "Narrativas de Viagem", a abordar e explicar convenientemente o que é o orientalismo.
O fascínio ocidental pelo oriente é antigo, mas foi Edward Said quem veio, em 1978, com a sua obra maior "Orientalismo", a dar uma nova ideia da temática.
Depois de analisar os vários sentidos da palavra, conclui o autor que o oriente é menos uma localização geográfica do que um lugar comum, uma generalização cultural. E essa generalização cultural foi nos dada por uma tradição de textos produzida ao longo de várias gerações, já desde a Antiguidade Clássica, a qual nos permitiu - a nós, cultura ocidental - afirmarmo-nos face ao outro - o oriente -, inferiorizando-o. Ou seja, é a tradição de textos ocidentais sobre o oriente que justifica a conquista dos povos extra-europeus.
Said vai buscar Michel Foucault e a sua ideia de poder e saber, do poder intrinsecamente associado ao saber, para nos dar uma definição de orientalismo:
"Orientalismo é um estilo ocidental para dominar, reestruturar e exercer a autoridade sobre o oriente".
Logo, o orientalismo é uma actividade discursiva que tem por objecto o oriente e o oriental (a ideia de saber) de uma maneira política e culturalmente interessada (a ideia de poder).
Ou seja, e em resumo, o oriente mais não é do que uma criação do ocidente, o qual criou a sua visão do outro oriental de uma forma comprometida com os seus interesses colonialistas.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Como os Asiáticos nos Viam

Desde a chegada de Vasco da Gama à Índia, os portugueses vão ser representados de diversas formas. 
Eram chamados de "firangi" (francos), termo que mais tarde viria a ser utilizado para todos os europeus.
Durante muito tempo os portugueses vão ser vistos como mais um povo asiático, tomados em Malaca como bengalis, no Japão como locais da Índia. Os próprios jesuítas foram vistos como religiosos asiáticos, budistas. A ideia de Europa era extremamente vaga.
Mas embora fossem vistos como asiáticos, nem por isso deixaram de ser encarados como exóticos, quer na fisionomia - cor da pele, olhos, cabelos - quer no traje. As fontes asiáticas falam dos portugueses como gente bem vestida, com calças em balão, chapéus como marca distintiva. O fascínio pelo traje dos portugueses chega mesmo ao ponto dos soberanos asiáticos trajarem à ocidental. 
E, depois, aparecem um conjunto de animais exóticos acerca dos quais vão surgir referências, como o peru e o pavão. Os portugueses faziam-se acompanhar por cães e escravos. E vinho, a tal ponto que são retratados pelos asiáticos acompanhados de copo na mão. O acto de beber era considerado imoral, decadente, mas por outro lado atraia os asiáticos.
Os portugueses eram ainda retratados como possuindo falta de modos, como gente rude, sem maneiras, suja, impossível de receber nas cortes imperiais. Gente associada ao canibalismo e, sobretudo, grandes apreciadores de carne de criança.
Outra imagem forte é a da condição marítima dos portugueses, associada à sua grande mobilidade, sempre em movimento para alguma direcção. Daí terem sido comparados a peixes - gente do mar que só aí sobrevive. 

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Lavrar o Mar

Sobre as matérias do post anterior não se deve perder - e não se deve perder mesmo, em qualquer caso - o livro Lavrar o Mar, de Luís Filipe Barreto.

Primeiras fontes portuguesas sobre a Ásia

Os portugueses tiveram um papel pioneiro, de abertura, no encontro de culturas Europa / Ásia, o qual se estabeleceu a partir do século XVI. Portugal foi o primeiro país da Europa a alargar as suas fronteiras para além deste continente e, daí, a estabelecer relações concretas com os povos de todos os continentes.
A experiência cultural dos portugueses começa primeiro na Índia, mas alarga-se cedo na medida em que nos conseguimos espalhar rapidamente por todo o continente, atingindo pois a expansão portuguesa uma profunda dispersão espacial. Esta expansão e sua diáspora era ainda caracterizada por uma pluralidade cultural, através da miscigenação, e por comércio feito em rede, sobretudo assente em parcerias ao invés de conflitos. 
O conhecimento da Ásia antes dos portugueses descobrirem a Rota do Cabo e, logo, antes do grande crescimento do comércio marítimo, era um conhecimento genérico e imperfeito que se foi aperfeiçoando com os portugueses ao longo do tempo. 
Podemos definir três momentos:
Um primeiro com a chegada e instalação dos portugueses, em que a informação era orientada pelos interesses da Coroa e o conhecimento era fragmentado, muitas das vezes sem se saber se correspondia à realidade ou não. Deste é exemplo o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama.


Num segundo momento evolui-se para um conhecimento mais aprofundado e detalhado e surgem as primeiras visões globais sobre a Ásia. Aparecem, então, verdadeiras enciclopédias com elementos mercantis, antropológicos, religiosos e linguisticos. Destes são exemplos a Suma Oriental, de Tomé Pires, e o Livro das Coisas da Índia, de Duarte Barbosa, ambos datados da primeira metade da segunda década de quinhentos.


A partir daí a produção textual cresce a um ritmo intenso, quer pela imensidão das matérias a abordar, quer pela multiplicação dos sujeitos que a ela se dedicam, como sejam, capitães, feitores, missionários, mercadores e aventureiros. O conhecimento assume, então, um carácter pragmático, com uma clara intenção didáctica, um saber para fazer, ou seja, para ser aplicado nas actividades marítimas e mercantis ou nas tentativas de aculturação e missionação. Em resumo, uma cultura prática e utilitária. Esta explosão informativa trouxe uma maior especialização e divulgação do conhecimento. Exemplos: as Décadas da Ásia, de João de Barros e depois Diogo do Couto, Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda, ou as Lendas, de Gaspar Correia - todos estes eram historiadores. Temos ainda exemplos de obras de humanistas, como Jerónimo Osório com o seu De Gloria, de médicos, como Garcia de Orta e os seus Colóquios, e de missionários, em especial, os jesuítas. 


Mas o texto mais conhecido é a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, também jesuíta, mas sobretudo um aventureiro que partiu para a Ásia em busca de riqueza. Da sua obra restam dúvidas sobre se a realidade era tal como foi relatada. O "Fernão Mentes? Minto" tornou-se célebre e da Peregrinação se disse que "ora é romance verdadeiro, ora é verdadeiro romance". FMP fala da China litoral, da qual teve experiência directa, e de uma China interior, pelo que lera e ouvira dizer. 
Da China disse-nos que era um "processo quase infinito falar dela". E é. Até hoje.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sistemas Políticos Comparados da Ásia Contemporânea

Primeiro há que referir e alertar para a diversidade daquilo que designamos por Ásia, uma região com raízes não apenas numa civilização, mas antes em diferentes civilizações, como a sínica, hindu, muçulmana e budista, com um passado variado. No entanto, partilham algo e isso é uma esperança para o futuro. A unidade da Europa reside na sua história; a da Ásia num futuro diferente do passado, na modernização. 
Aqui encontramos diferentes conceitos de poder. Um poder primitivo, ligado à autoridade, e um poder mais visto como ritual, uma ideia de que um procedimento correcto ao nível do ritual produzirá um maior poder.
Podemos observar na Ásia uma variedade de regimes e instituições, incluindo monarquias (Tailândia, Camboja, Japão, Nepal, Malásia e Brunei), sistemas socialistas (China, Vietname, Coreia do Norte e Birmânia) ou democracias há muito estabelecidas (Índia), bem como novas democracias que observaram transições que envolveram a substituição de lideres autoritários ou burocracias poderosas. Semi democracias em que as liberdades estão limitadas (Malásia e Singapura) e democracias de baixa qualidade (Tailândia e Filipinas). Regimes presidencialistas (Indonésia, Irão e Iraque), semi presidencialistas (Sri Lanka e Tajiquistão) e parlamentaristas. A maior parte dos regimes com sistema parlamentar na Ásia são antigas colónias britânicas ou foram fortemente influenciadas pelo sistema britânico (Tailândia).
Encontramos ainda países cujo governo nacional partilha formalmente o poder com governos sub nacionais, isto é, sistemas federais (Birmânia, Malásia, Índia e Paquistão). Mas existem outros que são estados formalmente unitários que garantem poderes substanciais a governos sub nacionais (Japão e Filipinas), enquanto que outros formalmente federais possuem os poderes dos governos sub nacionais extremamente limitados.  
As democracias da Ásia observam ainda com alguma frequência alguns defeitos, como sejam um controlo civil dos militares, um estado de direito fraco, luta contra a corrupção, incipiente desenvolvimento de instituições políticas estáveis e falta de resolução de conflitos por meios pacíficos. Há que acrescentar a esta situação o facto de se verificarem ainda alguns conflitos étnicos.
Outra característica que se observa amiúde é a existência de repúblicas dinásticas, ou seja, as dinastias políticas na Ásia representam como que uma recaída no governo tradicional. Esta política hereditária deve-se em grande parte a uma benevolência idealizada, a uma liderança paternalista e a uma dependência legitimadora. Trocado por miúdos, a sucessão familiar está enxertada nos regimes, partidos políticos e movimentos sociais, uma vez que constitui uma vantagem chave e decisiva num contexto de instituições frágeis. Os partidos nesta zona do globo são muitas das vezes construídos à imagem de um líder forte, uma figura identitária, destituídos de ideologia. O carisma herda-se. Acredita-se que a filiação é um garante de que, juntamente com características físicas, qualidades como a coragem, assertividade e astúcia são transmitidas de geração em geração. É como que uma forma de herdar capital moral com o automático reconhecimento do nome em que a admiração e o carinho são passados dos líderes heróicos para os seus filhos ou até viúvas. 


Exemplos? Corazon Aquino nas Filipinas, Aung San Suu Kyi na Birmânia, Benazir Bhutto no Paquistão, Indira Gandhi na Índia. Os Kennedy, os Bush e os Clinton nos Estados Unidos da América... Ups! Afinal no ocidente também há disto.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mandarim

Finalmente consegui começar a estudar chinês / mandarim.
Não é das coisas mais fáceis do mundo, é preciso muita dedicação. 
Como eu só me dediquei o que pude, que foi pouco, as dificuldades são reais.
Por exemplo, existem 4 tons e eu raramente consigo acertar um deles. Ok, decoro o pynyin (a romanização das palavras, ou seja, transformação de caracteres para o nosso alfabeto), mas leio-o mal e não consigo identificar em que tom é dito. Também ainda não consigo escrever / desenhar mais do que dois ou três caracteres.
Mas nem tudo é mau: já possuo um certo vocabulário - o normal para o sucesso do primeiro livro de chinês - e consigo identificar a maioria dos caracteres desse mesmo primeiro livro.
Ou seja, para além do sempre útil nihao (olá) também já consigo dizer wo shi youyong laoshi (eu sou professora de natação).

Baburnama


Um dos livros mais surpreendentes que li nos últimos tempos e que foi uma emoção descobrir foi o Baburnama.
O livro de Babur, escrito por este que foi o primeiro imperador mogol, é uma das primeiras autobiografias do mundo muçulmano, algo nada habitual no século XVI. O império Mogol começou por se constituir claramente como um estado guerreiro, de conquista e pilhagem, e Babur não podia deixar de nos relatar as suas vitórias e a vida em acampamento, sempre de um lado para o outro. 
O livro tem três capítulos: 
O primeiro dedicado a Fergana e Transoxiana, hoje Uzebequistão, onde Babur nasceu e lugar, em especial Samarcanda, com que havia de sonhar toda a vida. Aí, aos 12 anos, tornou-se rei;
O segundo dedicado a Cabul, terra que conquistou para si e lugar de onde haveria de lançar diversos raids ao território indiano antes de o tomar;
O terceiro dedicado ao Hindustão.
A conquista do Hindustão deu-se após várias incursões pelo noroeste da Índia e no seu livro Babur descreve as batalhas que travou contra os afegãos e os rajputs. Fala da diferença de meios (os afegãos possuíam 1000 elefantes e muitos mais homens) e deixa claro o seu talento de grande estratega.
Todavia, longe de ser um livro de guerra e de descrição de preparativos para batalhas, este é um livro emocional e cândido. Babur fala na viragem que a sua vida levou após a batalha contra os rajputs, os infiéis, em que passou a colocar mais ênfase no islão e optou pela temperança, ao mesmo tempo que nos dá conta do difícil que foi deixar a bebida. 
Isto no final da sua vida. 
Antes, porém, descreve a falta de interesse no seu primeiro casamento ao mesmo tempo que nos conta do seu primeiro amor - um rapaz do mercado cujo encantamento o leva a escrever uns versos. Tudo, ou quase tudo, servia de pretexto para a poesia.
Em verso escreve também que "para além da minha alma eu nunca encontrei um amigo, para além do meu coração eu nunca encontrei um confidente", o que evidencia a solidão que sentia.
Aponta a diferença de pronúncia dos indianos, dizendo que estes deixam cair algumas vogais.
Conta das suas caçadas e das suas festas, regadas a álcool e acompanhadas do consumo de narcóticos, que também usava para combater as suas insistentes dores.
À medida que se vai aproximando do Hindustão vai registando as "diferentes maneiras, diferentes costumes". Descreve os seus animais, plantas e frutos, bem como o "excelente" sistema de numeração e pesos.
Mas constantemente refere ser o Hindustão um lugar de pouco encanto, sem beleza nas suas gentes, sem harmonia ou simetria no seu artesanato, com cidades desagradáveis. Sonha com a sua terra natal, em especial com os seus melões.
Apenas uma boa coisa considera existir na Índia: muito ouro e dinheiro, ou seja, muita riqueza para pilhar.
Pese embora o saudosismo que marca o final do livro, escrito cronologicamente, a cada passo surge uma poesia, um momento de reflexão ou tão somente o relato de uma actividade do imperador conquistador:
"Eu atravessei o Ganges a nadar. Contei as braçadas que me levou a atravessá-lo: 33. Então, sem descansar para respirar, atravessei de volta para o outro lado. Eu nadei todos os rios - só o Ganges restava.".

domingo, 18 de agosto de 2013

Jodhaa Akbar


Para conhecer melhor Akbar, o terceiro imperador Mogol, ainda que de forma romanceada e certamente com muita liberdade à mistura, é ver o filme indiano Jodhaa Akbar. Aqui se vê a tolerância que marcou a sua vida, nomeadamente no facto de ter casado com pelo menos três mulheres, uma muçulmana (religião seguida pelos mogóis), uma católica (há quem diga que de origem portuguesa) e outra hindu. O filme dedica-se à vida a dois entre Akbar e esta última, uma princesa rajput, e as dificuldades que o imperador teve para conquistar a sua amada. 
Mesmo que possa não ser fiel à realidade histórica por inteiro, é um filme que se vê sem dor.



sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Índia Moderna e Contemporânea

Os séculos XIII a XVI viram emergir no sub continente indiano uma série de reinos regionais. Nomes como Mahmud Ghazni e Muhammad Ghuri iniciaram o domínio turco e afegão, estabelecendo-se na região de Delhi, uma posição estratégica que lhes permitia o acesso quer ao Vale do Ganges como à Índia Central e Ocidental. O Decão seria, no entanto, o maior obstáculo à ideia de império.

A norte o sultanado de Delhi imperava, quer fosse com os Khaljis, Tughluqs, Sayyids ou Lodis, assistindo-se ainda a raids mongóis e timúridas. Ibn Batuta, o viajante marroquino do século XIV, passou por lá e relatou o que viu e viveu durante o reinado dos Tughluqs.

Mais a sul assistia-se à rivalidade entre os Bahmanidas, muçulmanos, e os de Vijayanagara, hindus. Famosa ficou a Crónica dos Reis de Bisnaga, por Domingo Paes, no século XVI. Este último reino atingiu um grande nível de urbanização, comercialização e monetarização e foram como que os predecessores do estado Maratha criado no século XVII. Ainda hoje a sua arquitectura pode ser apreciada em Hampi.


Até que em 1526 uma nova força toma Delhi e viria a formar um império que reinaria grande parte do sub continente, destronada mais tarde pelos britânicos, os quais, esses sim, haviam de estender o seu domínio a todo o sub continente. Os Mogóis viram o seu império fundado por Babur, após decisivas batalhas contra os afegãos. Reclamavam a sua ascendência de Genghis Khan e de Timur, dois grandes guerreiros. Sucederam a Babur o seu filho Humayun (em Delhi perdura ainda hoje o mausoléu que a sua mulher mandou erigir em sua memória, costume que atingiria o seu apogeu com o Taj Mahal) e o seu neto Akbar.

Akbar, o grande, nasceu na Índia sob protecção hindu. Para Akbar os indianos não eram uma massa inculta de infiéis que horrorizaram Babur, eram antes seus compatriotas. Nessa sequência, Akbar levantou medidas discriminatórias para com os hindus, como a taxa dos peregrinos ou a jizya, e tomou medidas liberais. Com ele começou a ser criado um império pan indiano, com os mogóis (muçulmanos) a assegurarem os serviços de uma respeitada elite e os rajputs (hindus) a ganharem acesso a altos graus. O seu reinado foi marcado pela tolerância religiosa e pela expansão. Com a conquista do Gujerate Akbar entrou em contacto com os padres portugueses.

O sucesso Mogol devia-se em grande parte à abundante força trabalhadora que gerava excedente, o factor da grande estabilidade do regime. Também o comércio internacional ajudou. O governo era autocrático e a opulência inimaginável.


A arquitectura atingiu níveis de excelência com a construção do Taj Mahal por Shah Jahan, filho de Jahangir, neto de Akbar. Com estes dois descendentes de Akbar assistiu-se a um período de paz interna, desenvolvimento económico e crescimento cultural.


Pelo contrário, com Aurangzeb (1658-1707) o império Mogol entraria em conflitos. Se por um lado atingiu a sua máxima extensão durante o seu reinado, foi com o último grande imperador Mogol que o conflito cresceu em diversas esferas: política, religiosa, com estagnação cultural e declínio económico. Aurangzeb, ao contrário dos seus antecessores, não gostava de ostentação e a sua vida pessoal era marcada pela simplicidade. Proibiu a construção de novos templos hindus e colocou ênfase na posição superior dos muçulmanos. Aventurou-se na conquista do Decão, derrotando os sultanados de Golconda e Bijapur, mas lá encontrou a difícil oposição dos Marathas, força regional hindu que vinha em crescendo no fim do século XVII.


Depois da morte de Aurangzeb entrou-se num período de guerras de sucessão, com a emergência de estados regionais e invasões estrangeiras. Os Marathas ganharam força, muito graças à instituição do Peshwa e sua visão centralista.

Mas seriam os ingleses a levar o centralismo a uma nova forma: a colonial.  

A sua ascensão, com a criação da Companhia das Índias Orientais, foi em grande parte motivada pelo crescimento exponencial do comércio no século XVIII, sobretudo pelo comércio com a China (seda e chá), depois pelos tecidos da Índia.

Há quem defenda que as conquistas britânicas na Índia foram fortuitas, que vieram a ocupar o vacum de poder derivado do declínio Mogol, não tendo havido nenhum regime nativo que emergisse para preencher este buraco. A autoridade fragmentada, bem como o declínio económico e a lei fraca quer de afegãos quer de marathas teriam ajudado. Mas há quem defenda ainda que esse caos e vacum teriam sido criação da Companhia das Índias Orientais. Reais eram as ambições expansionistas britânicas.

Foi estabelecida uma nova capital em Calcutá e houve que adaptar-se a uma realidade da qual pouco mais se sabia do que questões comerciais, sendo que os britânicos praticamente não se tinham aventurado para além dos enclaves costeiros. Assistiu-se a um certo interesse pelas matérias orientalistas, com o estudo de textos originais em sânscrito e arábico, e criação da Asiatic Society of Bengal em 1784.

Os britânicos procederam à organização de um eficiente exército militar, com recrutamento entre as mais altas castas de agricultores hindus, preocupando-se, assim, em acomodar as sensibilidades de casta e religiosas no exército.

Viria a assistir-se a um imperialismo agressivo, produto das vitorias britânicas sobre Napoleão, com cada vez mais e mais territórios incluídos no império britânico, inclusive os Marathas.

Os indianos foram confrontados com a modernidade e depois do interesse inicial pelo comércio este dará lugar à criação de estruturas políticas, judiciais e fiscais cada vez mais burocratizadas. Do ponto de vista económico, a revolução industrial que estava a acontecer na Europa leva a que as máquinas embarateçam os custos de produção,  tornando mais competitivos os produtos que se ia buscar à Índia. Do ponto de vista cultural, a admiração inicial pelas culturas indianas foi substituída por uma crescente imposição do inglês e da cultura inglesa, com defesa de uma educação à europeia para todos os povos. No que uns viam caminho rumo à modernidade, outros viam ingerência (como é o caso da abolição do sati - o ritual das viúvas indianas que se imolavam na pira do marido).


Em 1858 a Companhia das Índias Orientais foi abolida e a Índia passa a ser governada directamente pela Coroa até 1947, período este que ficou a ser conhecido como Raj. O fim da Companhia deveu-se à Revolta dos Cipaios, um motim indiano que não foi apenas um acto de soldados descontentes, antes a resposta a múltiplas queixas como as políticas culturais britânicas, a severidade da avaliação das receitas e a degradação das elites terratenentes e principescas. Para além de que ao exército composto por indianos era pedido que servissem fora da Índia (receio dos soldados de poluição por atravessar o mar e lidar com indivíduos de castas mais baixas). Mais, a introdução da nova espingarda Enfield, cujos cartuchos estavam revestidos por uma camada de gordura tanto de porco como de vaca, os quais tinham de ser abertos com os dentes, era ofensiva quer para muçulmanos quer para hindus.

Na realidade o poder britânico era frágil e havia que mudar algo. A Rainha Vitoria viria a ser aclamada como imperatriz da Índia em 1877 no Durbar celebrado em Delhi. As bases do novo sistema britânico eram as seguintes: fazer das famílias reais a elite natural da Índia, usando como modelo a sociedade da aristocracia inglesa, as quais teriam uma câmara própria; criação de novas estruturas administrativas; reforma nas estruturas militares.

Mas assistir-se-ia a uma transformação política na Índia com o aparecimento de uma corrente nacionalista, primeiro algo difusa e depois mais coerente. A imprensa foi importante para a luta do nacionalismo. Dá-se, então, início à contestação indiana face à presença britânica, através de uma elite nacionalista sobretudo urbana. Em 1885 reúne-se em Bombaim o primeiro Congresso Nacional Indiano, o qual verbalizou o descontentamento indiano como meio de exprimir as reivindicações nacionalistas indianas. A visão do Congresso insistia que os interesses do eu, casta e comunidade ficassem subordinados ao bem comum e à nação indiana. Nos primeiros tempos não questionou a continuação do governo britânico, queriam antes mais participação no conselho legislativo e uma genuína abertura do serviço civil indiano aos indianos. Pediam reformas. E desejavam trabalhar sobre a opinião pública. Mas não conseguem atrair os muçulmanos.

O movimento swadeshi, passado à Índia por panfleto, imprensa e boca a boca, representava unidade e uma acção efectiva materializada no boicote à indústria britânica, sobretudo aos têxteis, e boicote às instituições governamentais de ensino.

Após a I Grande Guerra Mundial, na qual os indianos participaram, o descontentamento cresce e os nacionalistas pedem o Swaraj, o auto governo.


Entra em cena pela primeira vez Gandhi e as suas campanhas de resistência pacífica, o satyagraha, ou força da verdade, mediante boicotes, petições e actos de desobediência civil.

Os britânicos, também cansados com a guerra, lançam mão de um sistema de diarquia, dividindo as funções do governo em dois, um pelo governo central em Delhi sob controlo britânico, outro pelas províncias com algumas áreas como agricultura e educação e taxas. Mas os britânicos cometem um erro crasso ao emitirem o Rowlatt Act em 1919,  prolongando as restrições às liberdades fundamentais, como a detenção e julgamento sem júri. Esta intenção de aplicar a continuação de um estado de excepção cria hostilidade entre os indianos. Em sequência de mais uma década de luta, com o recurso a movimentos de desobediência civil, os indianos deixariam de discutir o autogoverno para passarem a pedir a independência total, o Purna Swaraj. As próximas décadas seriam dedicadas tanto a evitar os britânicos e ajustar-se a um mundo pós-colonial, como a tentar decidir a futura composição política do subcontinente entre Congresso e Liga Muçulmana. A clivagem inter comunitária e religiosa acentuava-se e seria aproveitada pelos britânicos para dividir ainda mais. Ao contrário do Congresso, que possuía uma organização já implantada, os muçulmanos estavam dispersos por uma série de partidos e a Liga não só não tinha um programa político claro como também não tinha um líder incontestado. Até que apareceu Jinnah, que juntamente com o hindu Nehru seriam as grandes figuras da independência indiana e da criação dos dois estados impendentes que foram criados após a atabalhoada e apressada partição em 1947. O Quit India deu resultado e Nehru pode fazer o seu célebre discurso a 15 de Agosto de 1947:

"Long years ago, we made a tryst with destiny. Now the time has come when we shall redeem our pledge - not wholly or in full measure - but very substantially. At the stroke of the midnight hour, when the world sleeps, India will awake to life and freedom. A moment comes, but rarely in history, when we step out from the old to the new, when an age ends, and when the soul of a nation, long suppressed, finds utterance."