segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Caligrafia Japonesa na Gulbenkian

Mesmo a terminar está a exposição "Caligrafia Japonesa - Obras-primas da caligrafia japonesa contemporânea reunidas em Portugal" na Fundação Gulbenkian.
A caligrafia, composta quer pelos kanji (os caracteres chineses) quer pelos alfabetos hiragana e katakana, é uma das vertentes da cultura japonesa mais amada e apreciada pelos ocidentais. Pelos japoneses é elevada à categoria de arte, sendo o manejar dos pincéis uma virtude que historicamente era extremamente valorada pela sociedade requintada. 
Esse bom gosto pode ser comprovado nesta exposição quer pelo traço virtuoso disposto em painéis igualmente lindíssimos, quer - complemento não dispiciendo mas antes soberbo - pelos nacos de poesia (tankas? haikus?) que nos oferecem. 
Já se sabia que os japoneses se deixam encantar pela natureza em geral e sobretudo pelas belezas que cada uma das estações do ano traz, cores e flores que lhes despertam emoções singelas logo transformadas em poucas linhas de puro deleite. Mas nunca é demais registar alguns exemplos:


Não há nada a dizer para as montanhas da minha cidade natal. Apenas agradeço pela sua existência, pois elas aquecem o meu coração. (Takuboku Ishikawa)


Divertir-se livremente como a nuvem, afastando-se das coisas fastidiosas do mundo. (Xunhe Du)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Imagens do Mundo Flutuante em Lisboa


Acerca do ukiyo-e, a arte japonesa das pinturas do mundo flutuante, já se tem falado aqui neste blogue. O que é novidade agora é a possibilidade de se ver alguns desses exemplos na cidade de Lisboa. Até Maio de 2015, na Casa Museu Anastácio Gonçalves está sob mostra a exposição temporária "Imagens de Um Mundo Flutuante, Estampas, livros e álbuns da colecção Paul Ugo Thiran". 
Esta exposição dá-nos a oportunidade de apreciar umas quantas dezenas de pinturas dos séculos XVII a XX. Todas elas deliciosas, como esta arte já nos habituou. Vemos os actores do kabuki transvestidos em damas, os samurai, enfim, cenas do quotidiano a que não faltam sequer umas delas inspiradas na obra literária Genji Monogatari. E vemos ainda cenas de batalhas, de corte e, sobretudo, de paisagens onde não deixam de estar presentes as árvores - não esquecer a importância das cerejeiras em flor na cultura japonesa -, os rios e as montanhas - o Fuji, sempre.
Paul Ugo Thiran era um belga que viveu em Portugal e começou a coleccionar estas pinturas, talvez por acaso, ao comprar uma que o seduziu num mercado em África. Desde aí não mais parou. Hoje, esta exposição que a sua colecção proporcionou está lado a lado com as porcelanas chinesas que outro coleccionador - Anastácio Gonçalves - juntou ao longo da sua vida. Um cheirinho a Oriente em Lisboa imperdível.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Twilight in the Forbidden City, de Reginald F. Johnston


Twilight in the Forbidden City é um livro de Reginald F. Johnston, um académico e diplomata britânico, mais conhecido por ter sido o tutor do último imperador da China, retrato que nos foi dado por Bernardo Bertolucci no seu filme "O Último Imperador".
Publicado em 1934, Twilight in the Forbidden City é uma espécie de memórias dos anos - e foram 32 - que Johnston passou na China (entre 1898 e 1930). 
Durante 1919 e 1924, enquanto tutor de Puyi, teve acesso especial à corte imperial Qing, como nenhum outro estrangeiro antes tivera. Nessa medida, dá-nos uma visão única e privilegiada não só da corte e da Cidade Proibida, mas também dos acontecimentos históricos dessa época. 
E foram muitos e determinantes. 
Desde logo as reformas de 1898, que terão oposto Kang Youwei a Cixi. 
Após a morte desta, a revolução de 1911 que levou à implantação da república na China e consequente queda do regime imperial que durava há uns quantos milénios.
Depois, a tentativa de restauração em 1917 e o período dos senhores da guerra.
Seguiram-se os movimentos pós Tratado de Versalhes, na sequência do fim da I Grande Guerra Mundial, como o Movimento 4 de Maio, bem como a ascensão dos nacionalistas e a unificação do país.
E, por fim, as movimentações japonesas que levaram à criação do estado fantoche de Manchukuo, pelo qual Puyi se deixou seduzir.
Muita matéria, portanto.
Como observador privilegiado, o autor descreve os rituais na Cidade Proibida, bem como a sociedade chinesa da época, incluindo movimentações políticas.
A sua opinião acerca de Cixi, a Imperatriz Viúva, ao contrário da de Jung Chang que vimos em post anterior, era francamente negativa. 
Conhecedor da realidade e cultura chinesa, é muito interessante ler o elogio que faz à educação, em especial na relação ente professor / aluno: à volta de Puyi, apesar de este já não reinar, mantinha-se toda a solenidade perante a sua figura, mas este mostrava uma enorme reverência para com o seu tutor. Este, por seu lado, admirava-o e manteve até ao fim dos seus dias uma grande amizade e certeza nas qualidade do seu pupilo, o que o fazia ter esperança de que o futuro do Último Imperador pudesse ser brilhante. Não foi.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cixi, a Imperatriz Viúva


Cixi é uma figura incontornável na história chinesa do século XIX e princípios do século XX. Como governante do império Qing, aquele que atingiu o máximo território ao longo de toda a civilização chinesa, teve de lidar com momentos tão decisivos quanto o foram os do embate chinês com os estrangeiros, o das várias rebeliões internas e o da preparação das reformas que permitissem um abraço à modernidade.
É figura incontornável, mas também contestada. A apreciação do seu papel não é unânime. Um novo livro de Jung Chang (a autora de Cisnes Selvagens e de uma biografia de Mao) vem apresentar Cixi, a Imperatriz Viúva, como a mulher responsável por ter mudado a China. "A herança da Imperatriz Viúva Cixi foi múltipla e grandiosa. O mais importante é que ela conduziu a China medieval à modernidade. Sob a sua chefia o país começou a adquirir praticamente todos os atributos de uma país moderno: caminhos de ferro, electricidade, telégrafo, telefone, medicina ocidental, um exército e uma marinha de guerra modernos e formas modernas de efectuar o comércio externo e a diplomacia. A imprensa floresceu, gozando de uma liberdade sem precedentes e desde então indiscutivelmente insuperada. Ela abriu a porta à participação política: pela primeira vez na longa História da China, as pessoas tornaram-se "cidadãos". (...) Procurando consensos, sempre desejosa de trabalhar com pessoas de diferentes opiniões, foi líder porque se manteve no lado certo da História."
Esta é uma posição contrária ao que é muitas vezes associada a Cixi, uma mulher ignorante e supersticiosa, segundo Reginald F. Johnston, expressa no seu Twilight in the Forbidden City, inimiga dos estrangeiros e reaccionária, segundo muitos outros.


Vamos a um pouco de história, então.
Os Qing - a última dinastia da China - eram manchus, uma imensa minoria comparada com os han, "os chineses". E Cixi, nascida em 1835, era, como não podia deixar de ser, manchu. De uma família ilustre e com alguma influência, foi escolhida como uma das concubinas do imperador Xianfeng. Não era a sua preferida, nem possuía uma das categorias mais altas, mas a sua sorte começou quando lhe deu um filho varão.
O imperador morre e após uma manobra entre a imperatriz Zhen (esposa oficial) e Cixi estas conseguem ficar a governar como regentes do filho menor desta última. 
Acontece que o seu filho imperador, Tongzhi, morre cedo e, pese embora toda a dor pela morte do filho, Cixi tem a oportunidade de continuar a governar por ter designado imperador um sobrinho também menor, o imperador Guangxu, que adopta como filho. De regência em regência foram mais de 40 anos de governo.
Jung Chang mostra-nos uma mulher rara, consciente do seu papel de mulher e dos ritos associados ao seu género. Por exemplo, Cixi governava atrás de uma cortina, de forma a que não fosse vista pelos homens. Dado o seu título de imperatriz viúva nunca pôde passar pela porta principal da Cidade Proibida e mesmo aqui apenas se podia movimentar por determinados espaços. Era uma apaixonada por ópera. Amava os seus Palácios de Verão. E teve uma outra paixão, essa de tipo amoroso, por um eunuco de nome An Dehai. Conta-nos Jung Chang que Cixi, para agradar ao seu amado eunuco, o presenteou com uma viagem fora da Cidade Proibida, mas que os seus rivais pela luta pelo poder, nomeadamente um seu cunhado, ao terem conhecimento disso - saídas da Cidade Proibida estavam vedadas aos eunucos - sentenciaram-no à morte. Jung Chang garante que Cixi apenas teve este amante, logo, que será mentira a tese de uns quantos que apresentam Cixi como ninfomaníaca e sexualmente depravada. 
Todo o livro de Chang é uma defesa de Cixi, a qual, após leitura interessada e atenta, não é difícil de aceitar, mesmo que sempre se tenha lido que Cixi era conservadora, má e sem piedade para com os demais.
Porém, Chang não isenta Cixi de algumas responsabilidades. Embora evite a palavra "humilhação", aponta o seu papel desastroso aquando da Revolta dos Boxers, um movimento anti-estrangeiros e anti-cristão que Cixi deixou que tomasse proporções trágicas e que fez  Pequim ser destruída e levou à fuga da corte para Xi'an. Diz-nos também que Cixi foi efectivamente responsável por uma dúzia de mortes, mas quase todas elas como resposta a atentados contra a sua vida. No entanto, cada um poderá concluir da forma como lhe aprouver quanto às insinuações de que terá sido ela a autora da morte da imperatriz que chegou a ser sua aliada, da morte da concubina preferida do filho - atirada viva para uma vala - ou da morte do imperador Guangxu por arsénico - para que morresse um dia antes dela própria e não pudesse, assim, ter influência na sua sucessão.
Aparte estas mortes, necessárias não apenas à conservação de Cixi no poder, mas mais importante, à forma como este poder deveria ser prosseguido, Chang apresenta-nos uma mulher interessada, com visão e abertura aos estrangeiros, uma reformista, na verdade - ao contrário da opinião mais corrente. Por seu lado, Kang Youwei, um dos responsáveis pelas reformas progressistas que ficaram conhecidas pelas "Reformas dos Cem Dias", em 1898, é nos apresentado como um homem maquiavélico, agindo por interesse dos japoneses. Diz-nos Chang que Cixi acabou com estas reformas não porque discordasse da abertura do império à modernidade, mas antes porque Kang conspirava contra a sua vida. 
Cixi entraria, assim, no novo século XX disposta a mudanças que sabia existirem já no estrangeiro. Proibiu o enfaixamento dos pés, costume han, mas não manchu, abriu novas escolas e acabou com o regime de exames de mandarinato, propôs o voto e, mais importante, advogou uma nova forma de governo - a monarquia constitucional.
Todavia, morreu em 1908 quando os manchus eram já muito contestados e havia quem pedisse um república, caso de Sun Yat Sen e os seus movimentos revolucionários. Prova provada de que Cixi era a mulher que conseguia manter o império unido e de pé será o facto de este não ter durado muito mais depois da sua morte. Em 1911/12 foi implantada a república e o seu sobrinho neto, o Último Imperador retratado em filme por Bernardo Bertolucci, Puyi, foi autorizado a permanecer na Cidade Proibida até 1924, altura em que foi corrido e se refugiaria no Manchukuo. Mas isso já é outro capítulo da história.
Voltando ao livro de Jung Chang, Cixi - a Imperatriz Viúva, é uma excelente leitura para qualquer interessado em história da China ou tão somente em história em geral, uma vez que nos mostra os meandros do poder e os costumes, as cerimónias e a etiqueta na corte imperial de Cixi, também conhecida como o "Venerável Buda", contemporânea da Rainha Vitória, mas por vezes comparada à dama de ferro Margaret Tatcher, duas senhoras da Grã Bretanha, uma grande rival da China do século XIX e até XX. Mas, sobretudo, a leitura desta obra saída à estampa em 2013 (tradução portuguesa da Quetzal neste ano de 2014) dá-nos uma outra visão sobre factos já conhecidos e uma imagem totalmente benévola de uma das mulheres mais relevantes da história chinesa e mundial. No final podemos optar por uma de duas: foi Cixi uma governante dotada que manteve a dinastia viva depois de todas as agressões? Ou foi Cixi a responsável pelo colapso da dinastia?

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A Imagem Que Falta, de Rithy Panh


A Imagem Que Falta, no original L'image manquante, é um filme de 2013 de Rithy Panh.
Já por aqui (http://estudanteasiatica.blogspot.pt/search?q=Panh) falámos desde cambojano.
Os seus filmes são todos muito pessoais, mas este é declaradamente autobiográfico. Traz-nos as memórias da sua infância, quando a partir dos 13 anos, depois de vida pacata na capital Phnom Penh, é levado juntamente com a sua família para os campos de trabalho, com o objectivo de re-educar as pessoas imbuindo-as do espirito revolucionário socialista. Eram os tempos da ascensão do Khmer Rouge de Pol Pot. O terror dominava, com torturas em massa, muita crueldade e fanatismo por parte de quem nesses anos 70 do século passado tomou o poder.
Diz-nos o narrador, de forma melodiosa, tomando a vez de Rithy Panh:
"Há tantas imagens no mundo, que acreditamos ter visto tudo. Pensado tudo. Há muitos anos que procuro uma imagem que falta. Uma fotografia tirada entre 1975 e 1979 pelos Khmers vermelhos, quando dirigiam o Camboja. Claro, por si só, uma imagem não prova o crime em massa; mas faz pensar; faz meditar. Ajuda a construir a história. Procurei-a em vão nos arquivos, nos documentos, nas aldeias do meu país. Agora sei: essa imagem deve faltar; e não a procurava – não seria obscena e sem significado? Então fabrico-a. O que eu ofereço hoje não é uma imagem, ou a busca de uma única imagem, mas a imagem de uma busca: aquela que o cinema permite. Algumas imagens devem continuar a faltar, devem sempre ser substituídas por outras: nesse movimento encontra-se a vida, o combate, a pena e a beleza, a tristeza dos rostos perdidos, a compreensão daquilo que existiu; por vezes a nobreza, e até a coragem: mas o esquecimento, nunca."


Ao longo do filme documentário, Panh vai dando forma às suas memórias de uma maneira magistral. Trabalhando com um escultor, filma as cenas com modelos de figuras de barro. Tal como um Buda a quem se ora, fala e chora, ele pretende que estas figuras possuam igualmente uma alma. São elas o veículo de transmissão das suas memórias e este seu acto de recordar funciona como uma forma de resistência, para além de tentar entender a natureza do crime perpetrado contra milhões de cambojanos. 
Rithy Panh perdeu toda a sua família próxima nos campos de trabalho. Felizmente há esperança e a humanidade não está só presente nos seus pequenos bonecos de barro, está também na sua grande sensibilidade em nos mostrar as suas sofridas memórias.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Genji Monogatari - O Romance de Genji

Uma das mais celebradas obras literárias de todos os tempos, por muitos referido como o primeiro romance do mundo, o Genji Monogatari foi escrito no início do século XI por Murasaki Shikibu (ou, pelo menos, a ela se atribui esta obra).
Nessa altura vivia-se a época Heian no Japão, uma das mais requintadas e iluminadas. Também a literatura viveu nesta época uma verdadeira explosão, expressando-se os autores sob diversas formas e, mais interessante ainda, as mulheres tinham também a oportunidade de o fazer. Claro que as letradas eram mulheres da corte, que viviam fechadas, daí que o género que mais relevo teve foi o dos diários - os nikki.
No entanto, mais interessante e incrivelmente, esta época Heian legou-nos o referido Genji Monogatari, escrito por uma mulher da corte que nos deixa a pensar como poderá ter experienciado tanto na sua vida para nos contar o que conta (um pouco à semelhança da Emily Bronte no seu O Monte dos Vendavais, mas a lady Murasaki uns quantos séculos antes). 
A história é a dos amores de Genji, o filho de um imperador com a sua concubina preferida. A sua mãe morre cedo e ele gravita na corte, sendo por todos admirado, quer pela sua beleza como pelo seu temperamento.

Da leitura do Genji fica a dúvida: era ele um sedutor ou um predador? 
A figura do Genji lembrou-me o Petchorin de Lermontov no seu "Um Herói do Nosso Tempo". Mas ao invés deste último, o Genji não parece ter quaisquer pudores nos seus amores e na forma como age com as mulheres. Petchorin, esse, ao menos confessava que as suas amantes ao fim de um tempo o passavam a entediar e, por isso, os as tratava de forma desagradável ou as abandonava pura e simplesmente. Murasaki, por seu lado, faz questão de nos dar a ler e ver que o seu príncipe garantia a atenção até ao fim dos seus tempos a qualquer mulher a quem tinha catrapiscado, bonita ou feia (se bem que o que interessava então era mais se a caligrafia das damas era distinta). Mas isso, aos tempos de hoje não chega, é peninha, não é amor, nem sequer respeito. Ou seja, Petchorin era declaradamente mau e sem escrúpulos, mas Genji parece igualmente egoísta e vaidoso, um cínico. Ponto.


Voltando ao livro Genji Monogatari, à volta da corte Heian é-nos contado como se entretinham os homens e as mulheres. Estas não saíram dos espaços privados. E não falavam de política. Aliás, a dado passo, quando diz que fulano vai tomar o poder, a autora escreve mesmo que pede desculpa por estar a entrar nesse tema que não é para mulheres. 
Os temas acerca do qual gira o Genji Monogatari são a caligrafia, a composição de poemas, a contemplação da natureza, a impermanência das estações (tema caro aos japoneses ao longo da sua história) e passatempos como a arte de manejar o pincel, de jogar o go, de tocar koto, flauta e alaúde. Requinte, em resumo.


Alguns exemplos:

"A manhã do primeiro dia do Ano Novo anunciou-se esplendorosa, sem uma única nuvem à vista. Em todos os jardins. Dos mais humildes aos mais sofisticados, a erva verde começava a despontar por entre as grandes manchas brancas de neve e as copas das árvores apareciam envoltas numa bruma que pressagiava a pronta chegada da Primavera e o desabrochar dos corações."

Acerca de um livro que Murasaki, a mulher de Genji, entendia que a sua enteada deveria ter lido, o príncipe respondeu: "Não vejo que utilidade pudessem ter para a instrução da menina! Aliás, seria de mau tom que uma mulher traísse as suas preferências manifestando um gosto exclusivo por uma única arte, tal como seria desagradável se fosse completamente ignorante em todos os domínios. Quanto ao carácter, conviria que fosse segura e senhora de si, sob uma aparência afável e amena..."

"Chegou o décimo primeiro mês, o mês das geadas, com a sua neve e o seu granizo; mas enquanto a neve derretia noutros lugares, ali, à sombra das artemísias e dos amores-de-hortelão que, de manhã à noite, a protegiam do sol, ela acumulava-se em camadas espessas, e no meio dessa neve que fazia pensar na Montanha Branca em Etchu, e que nem sequer era pisada por aqueles que ali passavam ao seu serviço, a Princesa definhava, apática."

Ao longo da obra são experimentados vários poemas, uma vez que, como atrás se referiu, esse era um passatempo que ocupava os elementos da corte Heian. Um exemplo:

"Se o vento tiver de seguir
Ao encontro da união
Dos vossos pensamentos
Oxalá eu já tenha decidido
Desaparecer em fumo"

Outro:

"Enquanto errava tristemente
Por ente mares e montes
Então eram para quem
As lágrimas inesgotáveis 
Cuja torrente me submergia"

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Wenceslau de Moraes


De Wesceslau de Moraes li dois livros este verão, "Paisagens da China e do Japão" e "Traços do Extremo Oriente". A escrita do português mais japonês de sempre é delicada, intimista e apaziguadora. 

Algumas passagens tiradas do "Paisagens da China e do Japão":

- talvez sobre os bambus de Kyoto, "Aqui, um bosque de bambus gigantes, cuja sombra eterna e cuja paz soturna dão alucinações aquele que se aventura em devassar o seu mistério"; 

acerca do shintoismo, "O shintoismo da palavra shinto (a estrada dos deuses), é a crença primitiva, patriarcal, das épocas remotas mo Japão; e conservada até hoje, a despeito da grande propaganda de Buda que se fez e se faz, é ainda a religião nacional, a religião do Estado. O shintoismo é a adoração pelo sol, pelo Imperador seu filho, por todas as forças da criação, pelas divindades protectoras, pelos génios, pelos nobres, pelos heróis e pelos sábios. O templo de shinto é o recinto consagrado a uma dessas invocações. Distingue-se antes de tudo pelo torii, o grande arco de pedra ou de madeira avizinhando do lugar, e como que indicando o caminho ao peregrino. Torii quer dizer descanso dos pássaros.";

- e, como não podia deixar de ser, qualquer texto sobre o Japão não pode fugir de falar sobre a impermanência das estações, "há alguns dias, na cidade de Kobe, - poderia precisar o dia, e quase a hora, se tamanho rigorismo me exigissem, - irrompeu a Primavera. Irrompeu: não há sombra de exagero no vocábulo, irrompeu, surgiu de um pulo, fez explosão. Neste país do Sol Nascente, onde o sol, e com ele todas as grandes forças naturais, são ainda uns selvagens - se assim posso expressar-me - uns selvagens sem freio, sem noção das conveniências, incapazes de se apresentarem de visita, de luva e casaca, numa corte qualquer da nossa Europa; neste Laís do Sol Nascente, ia eu dizendo, a criação inteira apostou, parece, em oferecer em cada dia uma surpresa, toda ela exuberâncias inauditas, espalhafatos únicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta essência da alma das crianças e a quinta essência da alma das mulheres, a gargalhada, a troça, enfim, motejadora de tudo quanto é ordem, harmonia, contemporizadora lei das transições.".

E mais algumas passagens, desta vez tiradas do "Traços do Extremo Oriente":

- uma explicação mitológica de como foi formado o arquipélago da Japão, "Copio de um livro as seguintes linhas: - "Antigamente os deuses invisíveis residiam no céu. O deus Yzagani e a deusa Yzanani datam dessa época puramente divina. Um dia, alguns pingos de água caíram da lança do deus, quem quisera sondar a profundeza do mar, e formaram a ilha de Awaji, que se tornou a ilha dos seus amores. A deusa deu ao mundo as oito principais ilhas do Japão, depois os trinta e cinco deuses ou kamis, e entre estes Amaterasu, a deusa do Sol. Amaterasu resolveu suplantar todas as divindades que haviam governado o mundo, em favor de um menino nascido das jóias que lhe ornavam a fronte. O filho do sol desceu à ilha de Kiusiu onde, durante duas gerações, residiu a família imperial; depois do que, dois dos seus membros atravessaram o mar interior, guiados pela ave de oito cabeças e protegidos pela espada milagrosa. Conquistaram o Nippon central aos deuses e aos homens rebeldes. Um deles, Yware Hiko, cujo nome póstumo foi Jimmu Tenno, foi o primeiro soberano do Japão; morreu em 585 antes de Jesus Cristo; os seus descendentes ocupam hoje o trono.";

- e para não deixar dúvidas sobre a preferência de Wesceslau entre o Japão e a China, eis um comentário definitivo, "China é suja e monótona. Loti dizia o inferno amarelo.".

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Guy Delisle na Ásia

Guy Delisle é um canadiano que vive em França e se dedica à animação. É autor de algumas novelas gráficas, como Shenzhen - A Travelogue from China, e Pyongyang - A Journey in North Korea, que li, e Crónicas da Birmânia e Jerusalém, que espero ler em breve.
Está mais que visto, pelo nome das obras, que elas se focam nas viagens do seu autor. 
No caso de Shenzhen e Pyongyang, Delisle foi para lá enviado a trabalho e da sua experiência de vida durante esse tempo dá-nos conta de forma humorada e descontraída. Sem perder o foco nas questões sociais e políticas que estas cidades colocam. 


De Shenzhen, onde esteve 3 meses, e cujo livro data de 2000, conta-nos como foi viver esse tempo numa cidade em construção diária a meio caminho entre o paraíso Hong Kong e a tradicional Cantão. Em Shenzhen podia, assim, constatar o crescimento, ou aparecimento repentino, de mais um edifício enorme. Marca da modernidade. Mas, ao mesmo tempo, a sua estadia era enfadonha e a relação com os chineses ficava como o filme, lost in translation. Os chineses até se esforçavam, mas não iam além de um good morning, mesmo que fosse noite, ou um happy birthday, mesmo que fosse fim de semana.


Pyongyang, de 2003, foi a obra que se seguiu. Também a trabalho, Delisle foi enviado à capital da Coreia do Norte, onde, jura, não voltará. Aqui fica num hotel isolado só para estrangeiros, com dezenas de andares, mas em que apenas um se encontra em funcionamento. Aliás, os estrangeiros concentram-se todos nos mesmos lugares, não mais do que três zonas na cidade, e todos frequentam os mesmos locais, como as festas das organizações não governamentais. Quando saem fazem-no acompanhados de um guia e obrigatoriamente visitam determinados ex-libris, não forçosamente de muito interesse para um não norte-coreano. Na verdade, a questão é esta. Como é que eles seguem acreditando na cassete que lhes é impingida pelo governo? Nas ruas vêem-se inúmeros indivíduos a trabalhar, incluindo ao domingo, supostamente o dia de descanso semanal, sempre num "trabalho voluntário". Os estudantes estão sempre ávidos na preparação das marchas para os grandes eventos que acontecem no país. Existe um cinema que apenas abre de dois em dois anos, para acolher um festival internacional onde participam países amigos com a Síria, a Líbia, o Irão e o Iraque. E os guias contam que se sente espiões por todo o lado, prontos a destabilizar o sistema social norte-coreano. 
Excelentes introduções para a realidade destas duas cidades asiáticas.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Nova China


No império do meio faz ainda mais sentido olhar para o mapa, aquele em que me sinto perdida, tentando encontrar o meu rectângulo à beira mar no centro do dito. Mas ele não está lá. Continua no centro o continente euro-asiático, mas agora com a terra dos han a dominar o centro das atenções, e nós relegados mais para a esquerda, no lugar da América, e esta no lugar da Ásia.
Causa-me sempre alguma confusão quando oiço ou leio opiniões de que a China vai dominar o mundo, tomando o lugar do "ocidente". 
Desconhecerão que a sua é uma das mais antigas e grandiosas civilizações? Que apesar da política de se manter isolada do resto do mundo, baseando as suas relações num sistema tributário ao qual estava subjacente o entendimento da sua auto-suficiência, a sua "decadência" não terá durado mais de 100 anos?
Pois, para a memória curta, só nos lembramos dos episódios das guerras do ópio e do retalho do país pelos ocidentais, russos e japoneses na segunda metade do século XIX e princípios do século XX. 
Mas que dizer do testemunho de Marco Polo que por lá passou no século XIII e que despertou a curiosidade e encantou o "velho mundo"? Que dizer do fascínio pelas porcelanas Ming, pelas sedas, pelo chá, após Portugal ter ligado comercialmente as duas costas do mesmo continente?
Isto para não ir ainda mais atrás, pois a partir daqui deixou de haver desculpas para o nosso desconhecimento da grandeza de uma outra civilização.
Os orientais, ao contrário dos ocidentais (ler o livro The Geography of Thought - How Asians and Westerners Think Differently...and Why, de Richard Nisbett, para melhor esclarecimento), têm tendência a ver o universo de uma forma cíclica (nós é mais linhas rectas, uma visão que se costuma apodar de linear). A  anunciada tomada do governo do mundo pelos chineses em breve (apregoado, entre outros, por Martin Jacques em Quando a China Mandar no Mundo) mais não é do que um retomar do papel da China na história mundial de acordo com com esta visão cíclica, em que se volta sempre ao início da rodinha.
Uma nota mais. São os próprios chineses a admitir que o seu país não é comunista. Duibuqi, também não é capitalista. É um país que segue um projecto próprio, comunismo de rosto capitalista. Ou capitalismo de rosto comunista. As grandes marcas ocidentais, tipo a Nike, estão a fugir de lá porque a mão de obra mais barata deixou de estar aqui. Mas outras grandes marcas ocidentais, tipo a Apple, continuam cá porque sabem que os chineses são bons a trabalhar com tecnologia. Ou seja, os chineses estão a enriquecer, estão a estudar mais, estão a viajar por todo o lado, seja no seu país, na Ásia ou em todo o mundo - a China já é o país que mais contribuí com viajantes para o turismo mundial. Abrem delegações do Instituto Confúcio por todo o mundo - o mandarim está na moda. 
Não ignoro os custos deste novo rumo da China, em que todos nos campos parecem querer demandar às cidades e que para cumprir o seu sonho de um futuro melhor que lhes foi prometido terão de trabalhar o dia todo, a semana toda, o ano todo. E isso, também, prova as características especiais deste modelo de China. Nem bom, nem mau. É o que calhou nesta parte do ciclo.

O último imperador


Filme do italiano Bernardo Bertoluci, arrasou os prémios dos Óscares em 1987.
Conta-nos a história da vida de Puyi, o último imperador chinês, que assistiu à queda da dinastia manchu Qing. Puyi subiu ao trono ainda muito criança, após a morte da sua tia-avó Cixi, a mítica imperatriz viúva.
Bertoluci conseguiu pela primeira vez a autorização para um ocidental filmar na Cidade Proibida e é aqui que vemos Puyi a ser coroado, a ser tutorado pelo inglês Sir Reginald Fleming Johnston e a ser mantido "preso" nos limites deste complexo após a instauração da República em 1912. Depois desta data a vida de Puyi dá uma volta enorme e acaba por ser expulso da Cidade Proibida e deixa-se encantar pela formação do estado fantoche de Manchukuo às mãos dos japoneses, para onde ele é convidado a ser a figura imperial. Lembrar que a Manchúria é a terra ancestral dos manchus. Com o fim da guerra e a derrota dos japoneses, Puyi é acusado de colaboracionista e preso. Acaba os seus dias em Pequim, de forma anónima, como se fosse apenas mais um vizinho. 
Bom documento histórico de uma parte do século XX chinês.

China - Um Toque de Pecado


"Tian zhu ding", no seu original, é um filme de 2013 de Jia Zhangke, estreado nos cinemas portugueses.
Este mestre do documentário chinês, autor de Still Life, The World ou Xiao Wu, traz-nos agora várias histórias num mesmo filme. Mas a temática comum é a tradição do passado e a chegada do progresso e do capitalismo. Apesar de ao início vermos a deslocação em massa dos chineses de volta às suas terras natais e famílias para a passagem do Ano Novo Chinês, em especial, de um homem deslocado e amargurado, Jia pergunta-se porque é que as pessoas estão a ficar cada vez mais distantes umas das outras. O país acelera rumo ao desenvolvimento, mudando drasticamente, a modernidade chega (vêem-se telemóveis e internet e adolescentes a fazerem de tudo para os ter), mas ao mesmo tempo está longe da maioria dos chineses.
A propósito de uma comparação entre Europa e China e da forma como é cá recebido, o realizador diz-nos (entrevista ao Expresso) que na Europa valorizamos o seu trabalho a nível estético e que na China apreciam apenas a história e a qualidade do drama.
Admirado na Europa, os filmes de Jia nem sempre são fáceis e estão longe de ser populares. No entanto, não se pense que não há história a contar. O que há é uma forma não convencional de o fazer. Os seus filmes dão-nos um insight poderoso sobre a realidade da vida dos chineses nossos contemporâneos. Realidade essa que nos é muito estranha.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

China, o país do futebol


Escreve Eduardo Galeano, no seu "Futebol: sol e sombra", a propósito das origens do futebol: 
"No futebol, como em quase tudo o resto, os primeiros foram os chineses. Há cinco mil anos, os malabaristas chineses dançavam com a bola nos pés, e foi na China onde se organizaram, tempos depois, os primeiros jogos. A baliza estava no centro e os jogadores evitavam, sem usar as mãos, que a bola tocasse no chão. De dinastia em dinastia a tradição continuou, como se vê em alguns relevos de monumentos anteriores a Cristo e também em algumas gravuras posteriores, que mostram os chineses da dinastia Ming a jogar com uma bola que parece da Adidas."

Livro Dinastia Ming


E uma boa leitura sobre a dinastia Ming:
The Confusions of Pleasure - Commerce and Culture in Ming China, de Timothy Brook.


Livro Dinastia Qing


Uma boa leitura sobre a dinastia / império Qing:
China's Last Empire - The great Qing, de William T. Bowe.



Etnia manchu

A partir dos anos 80 do século passado, ou seja, apenas há cerca de 30 anos, começou a verificar-se um revisionismo na historiografia Qing, sendo posto em causa que os manchus tivessem uma identidade única. Esta seria antes uma criação política, muito virada para a conquista da China, e terão sido os manchus que se esforçaram por criá-la, uma vez que entre eles existe uma diversidade imensa. Ou seja, a tendência actualmente dominante é a de acentuar a origem multi-étnica manchu e de que a sua identidade seria uma criação. Ficam, então, de alguma forma postas em causa as teorias até aí dominantes segundo as quais os manchus teriam sido assimilados pelos chineses. A verdade é que eles pretenderam governar a China segundo a teoria confucionista do mandato atribuído ao filho do céu, mas foram criando ao longo da dinastia uma identidade própria. 
Para entender melhor o assunto é ler Pamela Kyle Crossley, nomeadamente o seu The manchus.



A China Qing a partir das Guerras do Ópio - 1840 - 1911


No século XVIII a questão da balança comercial negativa para os chineses vai alterar-se radicalmente com o comércio do ópio. Esta substância já era conhecida desde o tempo dos Tang, mas era utilizada para efeitos medicinais, e não como vício e euforia narcótica. O que é facto é que a utilização do ópio juntamente com o álcool e tabaco vai ser moda entre os Qing (entre as suas elites?). E a prata vai deixar de afluir grandemente. 
Os britânicos sabiam que o comércio deste produto era moralmente repreensível, mas nem por isso deixaram de o fazer. Os Qing, por seu lado, tentaram proibir este comércio. Em 1838 debateu-se a questão do ópio entre os chineses e a facção moralista venceu. O comissário Lin Zexu (diz-se que terá enviado carta - nunca recebida - à rainha Victoria alertando-a, precisamente, para a moralidade da questão) foi enviado a Cantão e este decidiu apreender todo o produto e destruí-lo. Os britânicos, considerando-se ofendidos e considerando ainda que seus cidadãos haviam sido abusivamente presos, declararam guerra aos chineses, naquela que ficou conhecida como a primeira Guerra do Ópio, com a vitória dos ocidentais. Em 1842 é assinado o Tratado de Nanquim, aquele que é considerado como o primeiro dos tratados desiguais e que serviria de modelo para muitos outros. Com ele ficou fixada a cedência de Hong Kong aos ingleses, o estabelecimento de uma indemnização, a abertura de mais quatro portos e a residência aí de súbditos britânicos, relações de reciprocidade e a chegada ao fim do sistema de Cantão. No ano seguinte, em adenda, estabelece-se ainda a extra territorialidade, segundo a qual os cidadãos britânicos apenas podiam ser julgados no seu país, e o estatuto de nação mais favorecida para os britânicos, o que comprometia grandemente a autonomia diplomática chinesa.
Como se os britânicos não apreciassem, mesmo assim, o andamento do comércio e a proibição de penetração de estrangeiros pelo interior da China, em 1858, após a segunda Guerra do Ópio, é assinado o tratado de Tianjin e depois a Convenção de Pequim. Fica assim consumada a cedência de Kowloon aos britânicos, a abertura de mais onze portos, a liberdade de religião na China e a legalização do comércio do ópio.


Para além da pressão dos ocidentais, a China Qing teve ainda de lidar com diversas rebeliões a nível interno. Os motivos para a emergência destes rebeldes eram a corrupção, a má administração e problemas económicos e monetários. Para a história já havia ficado a rebelião do Lotus Sutra, na passagem para o século XIX, devastadora e da qual se diz que os Qing nunca recuperaram totalmente. Mas os meados do século XIX seriam palco de três grandes rebeliões. Várias muçulmanas, entre 1855 e 1873, como resposta a uma cada vez maior discriminação oficial dos muçulmanos. A repressão a estes movimentos foi tão feroz ao ponto da população muçulmana no Yunnan, um dos palcos, reduziu para menos de metade. Outra rebelião séria foi a rebelião Nian, entre 1851 e 1868, com origem no norte do Anhui e associada à seita do Lotus Branco. Era constituída por diversos grupos rebeldes e liderada por um antigo caudilho traficante de sal. Este movimento não tinha outra ideologia que não a de tirar aos ricos para dar aos pobres, dedicando-se mais às pilhagens. 


Pelo contrário, a rebelião Taiping possuía uma forte carga ideológica e entrou para a história como um dos maiores movimentos revolucionários. Entre 1850 e 1864 a China ver-se-ia dizimada por este movimento liderado por Hong Xiuquan, um hakka que após conhecer um missionário cristão passa a considerar-se como o irmão mais novo de Jesus Cristo. Deflagrada no sul da China, no Guangxi, rapidamente se concentrou em Nanquim. Imbuída num forte sentimento manchu, elabora a sua própria doutrina religiosa, um sincretismo entre cristianismo e aspectos chineses. Consegue reunir à sua volta uma série de descontentes, reúne exércitos de cerca de 700 mil homens, em 1853 entra em Nanquim e no seu apogeu domina mais de 30 milhões de pessoas. Eis algumas das reformas do então criado Reino Celeste da Grande Paz, Taiping Tianguo: instituição de milícias de camponeses, abolição da propriedade privada e nacionalização da terra para posterior distribuição do estado (por isso que os Taiping eram tão do agrado dos marxistas e viriam a ser apropriados como bandeira do partido comunista chinês no século seguinte), declaração de uma sociedade sem classes e com igualdade entre os sexos, interdição do consumo de ópio, álcool e tabaco, jogo e prostituição. 
Os Qing conseguiram, por fim, por termo a esta rebelião, mas, ironicamente, tiveram para tal o apoio dos ocidentais. Apesar de todas estas rebeliões, nenhuma delas consegue acabar com a dinastia Qing, embora tenha contribuído para a sua debilidade. Apesar de ser usual dividir a história Qing em períodos antes e depois da Guerra do Ópio, estas rebeliões foram muito mais gravosas para a população. Algumas regiões foram dizimadas e as populações morreram ou migraram. A reconstrução custou dinheiro considerável e a economia ficou mal e o comércio ao longo do raio Yangtze foi bastante afectado pela guerra.

À entrada da década de 60 do século XIX a dinastia e o império pareciam estar próximo do fim. No entanto, durariam ainda mais meio século. Nessa década surgiria um movimento de reformas que ficou conhecido como "auto fortalecimento", o qual defendia a aprendizagem da tecnologia evoluída do ocidente, enviando para isso estudantes ao ocidente no sentido de adquirirem conhecimento. Aplicariam a tecnologia ocidental, mas mantendo, no entanto, os valores chineses, que consideravam superiores. Esta tecnologia era mais a nível industrial, meios de comunicação como caminhos de ferros, extracção mineira, uma modernização a nível militar e naval. 

Mas este auto fortalecimento não atingiu os objectivos pois em 1895, em decorrência da guerra sino-japonesa, com vitória clara destes últimos, foi assinado o Tratado de Shimonoseki, um marco no imperialismo na Ásia Oriental, momento pelo qual se marca o desmoronar do império chinês (e, em contrapartida, a emergência do império japonês). Com este tratado a Coreia deixa de ser estado tributário dos chineses, para passar a ser um protectorado japonês. E os japoneses obtém ainda Taiwan e a península de Liaodong. Aqui vai estar um problema, pois começa a intervenção tripartida - Rússia, Alemanha e França - reclamando desta concessão do Liaodong. Rússia exige concessões semelhantes, britânicos obtêm os Novos Territórios, Alemanha Qingdao, enfim, várias nações conseguem obter importantes territórios e o império Qing fica fragmentado. Gradualmente, alguns membros das classes mais instruídas foram compreendendo que a força das nações ocidentais não estava apenas na tecnologia militar. Antes, os seus sistemas sociais e governamentais também lhes conferiam vantagens. Em consequência, difundem-se novas ideias políticas e começa a vingar a ideia de que as instituições políticas e a burocracia chinesas estavam obsoletas. Os "cem dias de reforma", em 1898, ficou conhecido como um movimentos em que Kang Youwei e Liang Qichao defenderam reformas radicais no sentido de levar à modernização da China. O paradigma era, de certa forma, a reforma Meiji do Japão. As medidas defendidas eram, entre outras, a inclusão de estudos ocidentais na educação chinesa, o envio de chineses para o estrangeiro, a reforma do sistema de exames, a modernização e ocidentalização do aparelho burocrático imperial, a modernização do exército e o estabelecimento de assembleias locais eleitas. Esta a reposta das elites ao imperialismo. No entanto, os conservadores manchus, entre os quais Cixi, a imperatriz regente, deram golpe de estado e voltam ao poder (haviam fugido).


A resposta nativista ao imperialismo veio pela Revolta dos Boxer, movimento camponês anti-estrangeiro, anti-imperialista e anti-cristão e influenciado pela tradição de sociedades secretas. Não tinham projectos reformistas e, até, guiavam-se pelo lema "apoio aos Qing, destruição dos estrangeiros". Eclodiu na região de Qingdao, onde os alemães estavam, e assistiu-se à destruição de igrejas e ao ataque a missionários. Estendem o seu foco de acção e entram em Pequim. No entanto, as tropas Qing vão ter um comportamento ambíguo e vão antes tolerar os revoltosos e não suprimi-los. Só quando são chamadas tropas estrangeiras para intervir - uma vez que o bairro das legações em Pequim tinha sido atacado - é que Cixi clarifica sua posição e ordena que fossem apoiados os Boxers contra os estrangeiros. Assistiu-se a uma enorme brutalidade, com saques e incêndios em Pequim. Chineses capitulam e - hei-lo - vem mais um tratado desigual a caminho, o Protocolo Boxer de 1901, com mais humilhação e indemnização a pagar pelos chineses. A soberania Qing fica extremamente debilitada e daqui para a frente emergirá um sentimento nacionalista e ideais modernistas que irão levar à queda da dinastia e do império e à instauração da república em 1912. Destaque para o papel de Sun Yat-sen, o emigrado que conseguiu reunir à volta da sua Aliança Revolucionária (mais tarde o Guomindang, o Partido Nacionalista do Povo) muitos partidários.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A Primeira Metade da China Qing

A dinastia Ming começou a entrar em decadência por vários factores. O imperador Wanli, que reinou durante 48 anos, morreu em 1620 e essa decadência acelerou. Aos imperadores faltava-lhe poder efectivo, havendo um domínio da burocracia e dos eunucos. Existiam ainda problemas económicos e fiscais. E também factores externos contribuíram para o seu fim. Invasões japonesas à Coreia envolveram a China na contenda, com perdas humanas e gastos financeiros significativos. Mas o perigo maior viria dos manchus. Numa aliança de tribos, Nurhaci vai anexando territórios e os seus sucessores chegam cada vez mais perto de Pequim. Sucessores dos Jurchen, os manchus assentavam a sua organização no sistema de estandartes, com funções militares, mas também políticas, sociais e económicas.


Em 1644, numa altura de caos fiscal, revoltas camponesas e surtos de banditismo, Li Zicheng, um caudilho, toma Pequim. Vai, então, proclamar a dinastia Shun, com capital em Xi'an, mas esta durará pouco. Wu Sangui, um oficial Ming que haveria de ficar conhecido como um dos três feudatários, pede ajuda aos manchus para combater Li Zicheng e estes aproveitam a vitória para entrarem eles próprios em Pequim. A pacificação da China e a consolidação da dinastia Qing durará cerca de 40 anos, pois, para além dos ditos três feudatários, os manchus tiveram ainda a oposição dos Ming do Sul e do império marítimo dos Zheng. Estes eram uma família de comerciantes do Fujian que se estabeleceu em Taiwan e aproveitou a falta de concorrência derivada do facto de os Ming restringirem o comércio marítimo e os japoneses terem expulsado os portugueses e reduzido os holandeses à ilha de Deshima. Apenas em 1683 conseguiu o imperador Kangxi ordenar um ataque bem sucedido aos Zheng, eles que eram apoiantes dos Ming do Sul.    

A partir desta data os Qing conseguem então a pacificação e partiram para tempos de prosperidade. Muito também graças a três grandes imperadores que através dos seus longos reinados consolidaram a dinastia: Kangxi (reinou entre 1662 e 1722, o maior reinado), Yongzheng (reinou entre 1723 e 1735) e Qianlong (reinou entre 1735 e 1796, tendo abdicado de forma a não governar nem mais um dia do que o seu avô Kangxi havia reinado).


O império Qing mais do que duplicou o território dos Ming, incluindo no seu império o Tibete, a Ásia Interior e Taiwan. E mais do que triplicou a sua população. E lembrar que os Qing foram contemporâneo de outros grandes impérios como os otomanos, os mogóis e os romanov. E com eles verificaram-se influências mútuas entre oriente e ocidente. Mas já lá vamos. Vejamos agora aspectos na sua administração.
Os Qing mantiveram a maioria das práticas Ming e encorajaram os funcionários chineses a servirem a nova dinastia, apesar de terem obrigado os chineses a usarem a sua característica trança, o que muito os humilhou. Não pode deixar de referir-se que os Qing eram considerados bárbaros estrangeiros, ou seja, não han, e eram claramente uma minoria governante.
No entanto, mantiveram algumas das instituições políticas anteriores, como o Grande Secretariado (o órgão executivo), os seis ministérios e o Censorado, para além de terem restaurado a Academia Hanlin. Mantiveram o sistema de exames como forma de recrutamento de oficiais (sistema de mérito, ao contrário do que acontecia nos estandartes, que era hereditário). Quanto à administração provincial, criaram 18 províncias, encontrando-se abaixo desta unidade territorial prefeituras e distritos. À frente de cada província estava um governador, ou um governador geral à frente das províncias maiores ou de conjuntos de duas províncias. A máquina administrativa dos Qing é dual, encontrando-se aí chineses e manchus. 
Mas os Qing criaram três novas instituições que se moviam fora do esquema, segundo uma rede clientelar e não através de funcionários que passaram nos exames. Aqui o sistema de estandartes vai ser particularmente importante, pois era daqui que seguiam os homens para estes novos órgãos. São eles o Lifan Yuan, ou departamento de assuntos coloniais, criado para administrar áreas fora do território chinês tradicional, ou seja, para lá da muralha. A sua função era desenvolver rituais para integrar as populações coloniais no império Qing, através de caçadas ou de missões tributárias. Outro departamento então criado foi o da Casa Imperial, destinado a tratar do património pessoal do imperador e dos seus serviços pessoais. Este é visto como uma resposta ao crescente poder dos eunucos e estes ficaram somente com os serviços mais íntimos, sendo as outras funções preenchidas por funcionários vindos dos estandartes. Por fim, foi ainda criado o Conselho de Estado, ou Grande Conselho, o qual começou por ser uma comissão informal de aconselhamento do imperador para assuntos militares, mas que depois evoluiu para um órgão que se estendeu a todas as áreas da política imperial. Este órgão acabou por tornar-se o mais alto órgão de decisão política e fez com que o Grande Secretariado fosse perdendo a sua força política e poder de decisão. 

Algumas razões para a prosperidade da China na primeira parte da dinastia. Desde logo, mudanças na agricultura, com a introdução de mais variedades de arroz, ou seja, mais colheitas por ano. Também a introdução de novas culturas, sobretudo vindas do novo mundo, como a batata doce, o amendoim e o milho. Ainda, o aproveitamento de terras que não eram adequadas para o cultivo de outros produtos, ou seja, o aumento da terra cultivada. Verificou-se um acentuado crescimento demográfico, para o qual contribuiu igualmente a existência de uma baixa taxação e a baixa de mortalidade e de infanticídio.

Com o território pacificado, os Qing vão ter menos preocupações com a defesa e o comércio internacional vai assumir um papel de grande relevo. Lembrar que a China pretendia enquadrar todos os estrangeiros no seu sistema tributário de comércio, considerando-os como vassalos. Este modelo implicava uma China isolacionista, xenófoba e incapaz de se adaptar a um esquema de estados nações baseados no respeito mútuo e soberania. Mas este sistema tributário havia já perdido dominância antes da conquista dos Qing, muito também porque os custos para o manter eram bastante avultados, constituindo um fardo para o tesouro do estado. Assim, por exemplo, os Ming haviam autorizado já os portugueses a estabelecerem um centro de comércio privado em Macau e os russos em 1689 comerciavam em plano de igualdade com a China. Em 1699 é autorizado aos britânicos o estabelecimento de uma feitoria em Cantão. Este era o porto mais utilizado pelos europeus, dadas as suas vantagens como boas vias. 


Nos finais do século XVII o chá estava a dar os primeiros passos como produto do agrado dos britânicos. Durante o século XVIII a exportação de chá para a Europa vai duplicar sucessivamente. O comércio marítimo de então dos europeus com os chineses envolvia sobretudo a troca de chá por prata. Havia ainda a exportações de alguma porcelana, seda e papéis de parede com motivos chineses. Mas era a prata que os chineses mais queriam e ela é que financiava todo este comércio e terá sido a necessidade de prata por parte dos chineses que desencadeou este comércio globalizado. 


Entre 1760 e 1834 o comércio com os europeus foi-se institucionalizando no sistema de Cantão, segundo o qual o exclusivo de comércio com os ocidentais estava limitado às cohong, um conjunto limitado de corporações de firmas chinesas oficialmente autorizadas a negociar com os ocidentais e responsáveis por policiar este comércio. As regras do jogo eram claramente ditadas pelos chineses; os ocidentais apenas podiam negociar com as cohong e estavam limitados às 13 feitorias e tinham poucos direitos. 

No final do século XVIII verificava-se um défice comercial claro por parte dos europeus, em especial dos britânicos. Estes começam, então, a fazer pressão para uma maior abertura da China. Em 1792, era Qianlong imperador, dá-se a primeira embaixada britânica à China, tendo sido enviado Lord Macartney. Os britânicos estavam influenciados pelas filosofias do comércio livre de Adam Smith (liberalismo) e por isso queriam obrigar os Qing a abandonar as suas limitações à penetração do comércio ocidental. Existiam diferenças claras entre os chineses e os ocidentais: uma obstinação com o arcaico ritual, por contraponto ao racionalíssimo e pragmatismo ocidental; uma abjecta obediência a uma autoridade despótica, em contraste com as premissas de igualdade, dignidade humana e soberania popular ocidentais.
A embaixada de Macartney, que pretendia redução de taxas, abertura de mais portos ao comércio, suscitar o interesse chinês pelos produtos britânicos, autorização para instalação de um embaixador em Pequim, informação sobre a China, dizia, a embaixada de Macartney falha, não sem que este se tenha recusado a fazer o kowtow diante do imperador, ou seja, o ritual e prostração e bater com a cabeça no chão.



domingo, 9 de fevereiro de 2014

Semelhanças e diferenças entre os Ming e os Qing

Quer a dinastia Ming (1368-1644) quer a dinastia Qing (1644-1912) têm à cabeça um imperador, seja uma figura forte, seja meramente simbólica. Ambas possuem um estado central e burocrático, cujos funcionários são recrutados através do sistema de exames (ideia de mérito). O crescimento populacional foi evidente ao longo dos dois períodos, bem como o crescimento económico, aumento do dinheiro em circulação, aumento do comércio e aumento da quantidade e da variedade de produtos transacionados. 
Como diferenças entre as duas dinastias temos desde logo a mais evidente. Os Ming eram considerados chineses (han) e os Qing estrangeiros (manchus). A dimensão territorial do império chinês é, igualmente, diversa e entre uma dinastia e a outra o território duplicou, passando a abranger a Mongólia, Manchuria, Xingxiang e Taiwan. Outra diferença assenta na questão do prestígio, ou não, dos militares. Durante os Ming estes eram mal vistos, uma vez que as artes da guerra eram também mal vistas. Com os Qing, império expansionista, pelo contrário, eram altamente prestigiados.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

China - a Dinastia Ming (1368-1644)


Os Ming sucederam a uma dinastia estrangeira, os Yuan, mongóis. Os últimos anos desta dinastia foram de caos social, político e militar.
É num ambiente de emergência de focos de rebelião, de que foram exemplo os Turbantes Vermelho, inspirados em teorias budistas, que surge Zhu Yuanzhang, de origem muito humilde. Junta-se aos revoltosos, tem ascensão muito rápida entre os Turbantes do Norte, em 1358 conquista Nanquim e torna-se líder incontestado e um dos mais fortes senhores em luta pela supremacia da China. Acaba por tornar-se o primeiro imperador da dinastia Ming, tomando o nome de Hongwu. A capital dos Yuan era Pequim, mas os Ming começaram por ter a sua capital em Nanquim.
Hongwu vai estabelecer um sistema autocrático altamente centralizado, extinguindo o cargo de primeiro ministro. Como órgãos temos o Grande Secretariado, com grande concentração de poder por parte do imperador e na sua directa dependência, seis ministérios, Censorado e cinco comissões militares. Ao nível da administração provincial existem 13 províncias e 2 áreas metropolitanas. 


Yongle, o terceiro imperador Ming (1402-1424), vai ter um papel de grande destaque não só entre a história Ming, mas também na história da China. Ele começou por usurpar o poder ao seu sobrinho, mas não quebra a linha hereditária dos Ming porque era um dos filhos do primeiro imperador. A sua base de poder era em Pequim, por isso vai transferir a capital para aqui. Como justificação havia a questão das fronteiras a norte e a consequente necessidade de defesa face a eventuais ameaças. A transferência da capital foi feita de forma faseada, seguindo um ambicioso projecto imperial. Houve um forte investimento na construção da Cidade Proibida e do Templo do Céu e a deslocação maciça de populações. Também deve ser atribuído a Yongle a reconstrução do Grande Canal, que havia sido construído pelos Sui entre 605 e 610 e que havia sido abandonado e deixado degradado pelos Yuan, e a reconstrução de outro grande símbolo, a Grande Muralha. Ainda, foi no reinado de Yongle que o almirante Zheng He foi enviado em missão tributária para toda a Ásia e até costa oriental africana. 


O primeiro imperador, Hongwu, quando ascende ao poder vai proibir as navegações dos chineses. Ele promovia sobretudo a agricultura, ainda que houvesse comércio marítimo legal, sempre realizado no âmbito das missões tributárias. Havia, igualmente, um comércio ilegal. Estas relações tributárias consistiam na troca de embaixadores no âmbito de relações diplomáticas em que os demais estados se reconhecem vassalos do imperador da China, reconhecendo a sua superioridade e aceitando as regras de comércio chinesas. Neste sistema os chineses ultramarinos, que haviam deixado o seu país de forma ilegal, tinham um papel essencial e de grande prestígio. 


Com Yongle vamos verificar um aumento do intervencionismo quer terrestre quer marítimo, este último através das expedições do já citado almirante Zheng He, naquele que é o culminar da supremacia chinesa na Ásia. Zheng He era um eunuco, de origem muçulmana, natural da província do Yunnan. O peso muçulmano nestas expedições é muito forte (para além de Zheng He havia ainda tradutores muçulmanos), tal se devendo à islamização da Ásia do Sueste e à sua importância no comércio internacional. As expedições de Zheng He foram sete, entre 1405 e 1433, esta última já no reinado de Xuande. Chegaram à costa oriental africana e terão passado por mais de 40 países. Os objectivos destas expedições eram a afirmação da legitimidade da nova dinastia Ming, mais ainda necessitando Yongle desta legitimação por ser um usurpador. E pretendia-se ainda um reforço na percepção da força e superioridade da China Ming. Na implementação deste sistema tributário pretendia atrair-se para a órbita chinesa vários estados e recolher-se tesouros e produtos exóticos. Mas estas expedições tinham um elevado custo. Por outro lado, preocupações com a defesa face aos mongóis e os elevados custos da transferência da capital para Pequim fizeram com que estas expedições fossem vistas como supérfluas e um desperdício de recursos, daí o seu fim.

Quanto à burocracia civil Ming, esta era preenchida por funcionários que haviam passado no sistema de exames. Este era a principal forma de recrutar gente para a administração do aparelho governativo. Os oficiais civis, mandarins, eram uma espécie de nobreza não com base no sangue, mas no estudo.
Um grupo que foi ganhando destaque ao longo da dinastia era o dos eunucos. Hongwu estabeleceu que estes permanecessem analfabetos e que o seu número não fosse além dos cem. Mas as suas medidas depressa foram abandonadas e os eunucos crescem em influencia. Eles não eram meros servos domésticos, uma vez que vamos vê-los envolvidos em uma série de outros aspectos, de que é exemplo o almirante Zheng He, enviado em missão tributária e diplomática. E também não eram um grupo de iletrados, tendo mesmo sido instituída uma escola no palácio imperial para eles. Ao longo de toda a dinastia os eunucos terão chegado a um milhão e conseguiram mesmo a proeza de, dada a sua proximidade, chegar a manipular imperadores. A castração era, pois, uma forma de ascenderem socialmente.  
A estrutura da sociedade dos Ming era muito rígida, pautada pelo imobilidade. As leis estabeleciam que se herdasse a profissão, assim, um filho de artesão, artesão seria. À actividade comercial foi dada relevo, sendo conferida uma certa liberdade aos mercadores. Foi dada grande importância à estabilidade dos preços e foram uniformizados para todo o território os pesos e medidas. A prata era a grande moeda de troca. Verificou-se uma grande prosperidade a nível económico com os Ming, bem como uma expansão da imprensa.  

Uma palavra para a entrada dos portugueses na China Ming. Vai ser em Malaca que ocorrem os primeiros contactos entre os chineses e portugueses, a partir de cerca de 1509. Em 1513 Jorge Alvares chega à China. Tendo em consideração que comércio legal era aquele que era efectuado no âmbito das missões tributárias, quatro anos mais tarde os portugueses decidem encetar contactos, enviando Tomé Pires como embaixador para tentar estabelecer relações oficiais com a China. No entanto, nesta primeira embaixada de 1518 vão ter lugar alguns exemplos dos conflitos que se iriam ver nas relações entre ambos ao longo dos tempos: a impaciência portuguesa face à burocracia chinesa e a falta de reciprocidade. Quando chegam a Cantão, os portugueses vão disparar canhões como forma de saudação, mas não conseguem mais do que incutir medo na população e indignação nas autoridade. Era evidente o choque cultural. A imagem dos portugueses era então negativa, gente de má índole, que perturba a ordem, come crianças e utiliza os seus órgãos para os mais variados fins.   

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

História do Japão - da Restauração Meiji de 1868 à Rendição em 1945

Os americanos, e outras potências ocidentais, forçaram a abertura do Japão, que sob os Tokugawa se tinham mantido fechados ao mundo exterior por mais de dois séculos. Então, a partir de 1868, vamos assistir a um abraço japonês à ocidentalização e modernização. 


Uma elite de daimio iria guiar o país sob a capa de um golpe de estado que pretendia a restauração imperial. Meiji era o nome do novo imperador. O slogan era "reverência ao imperador e expulsão dos bárbaros". Foi apresentado um programa de desenvolvimento, um novo modelo de sociedade, o qual constituía uma estratégia de progresso para o Japão. Mas a estrutura de governo mantém-se e a abertura na realidade não existe, nem uma aproximação aos cidadãos. O poder autoritário e autocrático continuaria, agora nas mãos de uma elite de poder que até aí havia estado na periferia. 
No entanto, foram tomadas algumas medidas novas, como a abolição dos han (os feudos), a extinção da divisão entre as classes, a formação de um exército nacional e a adopção do serviço militar obrigatório. A criação de uma constituição e da Dieta (o parlamento) foram apenas instrumentos que tinham por missão atenuar alguma da pressão social que começava a emergir, não eram verdadeiras reformas.
Havia, sobretudo, um grande pragmatismo, a noção de que o ocidente estava mais desenvolvido do que o Japão porque tinha evoluído tecnologicamente e cientificamente. Com efeito, a importação de padrões ocidentais não teve que ver com qualquer fascínio, antes com um reconhecimento da superioridade ocidental. Coisa nunca vista, logo a seguir à Restauração Meiji um governo inteiro foi enviado para o ocidente em busca de conhecimento. Havia a noção da irreversibilidade da modernidade, da ocidentalização. Logo, o slogan "reverência ao imperador e expulsão dos bárbaros" foi pragmaticamente substituído pelo "modernizar o país e fortalecer as armas".
Os japoneses foram, assim, o arauto da modernização no espaço asiático, e viriam depois a legitimar aí um discurso expansionista. A figura do imperador possuía um papel central e mítico, uma vez mais. Era feita a apologia da sua figura de imperador como sagrado e inviolável. Esse iria ser, precisamente, uma contradição no constitucionalismo japonês aos olhos ocidentais. 
Um édito de 1892 veio dizer que todo o esforço de educação deveria ser levado a efeito para servir o imperador e, assim, o Japão, e não para se valorizar a si mesmo. A ideologia kokutai, esta forma de formatar o indivíduo para que todo o esforço na sociedade fosse para servir o imperador, estava em marcha.
Os líderes Meiji começam a convencer-se de que a rivalidade e a concorrência entre as potências e os impérios eram um motor para o desenvolvimento e, assim, iniciaram os seus desejos de entrar em confronto com outras potências. Primeiro havia que eliminar a rival China, no sentido de se tornar a maior potência asiática. A China, em finais do século XIX estava extremamente debilitada, saída das guerras do ópio com os britânicos e cheia de rebeliões internas, dai que no confronto sino-japonês de 1894-95 o Japão saísse vitorioso. O pretexto que estes usaram para o ataque foi a suposta excessiva influência que os chineses tinham sobre a península coreana. Em consequência da vitória japonesa, é criado um estado fantoche pró-japonês na Coreia e os japoneses ganham Taiwan. Foi o resultado do belo tratado de Shimonoseki, um item mais no extenso rol das humilhações chinesas do século XIX. 
A verdade é que o domínio sobre a Coreia permitia ao Japão o acesso a matérias primas como o carvão e o aço, fundamentais para os planos expansionistas japoneses. Com a vitória sobre a China está deixa de ser o paradigma civilizacional e político para o Japão. Agora derrotada por um Japão industrializado e militarizado, a China não tem lugar neste mundo moderno que se está a criar, pensaram os japoneses. Na senda da prossecução do seu papel messiânico, levando a civilização ao mundo asiático, o Japão enfrenta a Rússia - e vence - no início do século XX. Pela primeira vez passa a ser visto pelas potências ocidentais não como uma potência asiática, mas como uma potência mundial, levando os seus avanços a preocupações. O Japão é forçado a assinar tratados que o refreiam no uso da força. Tratados uma vez mais humilhantes. Assiste-se a um crescente nacionalismo.   


Mas em 1912 o imperador Meiji morre e surge uma nova época, a Taisho. As exigências que se apresentaram então ao novo imperador eram maiores, quer externa quer internamente. A nível externo esta época coincidiu com uma retracção das potências, uma vez que o contexto era o da I Grande Guerra Mundial. Verificou-se uma pausa no expansionismo dos impérios ocidentais. O Japão estava num processo e ritmos completamente diferentes, mas vamos assistir igualmente a uma retracção na expansão do império japonês. Não por razões externas - o contexto era-lhe favorável -, mas por questões internas. A sociedade japonesa era agora industrializada e urbanizada. A população havia aumentado. A pequena oligarquia começa a ter dificuldades de governar neste novo contexto sócio-político onde emergem agora grupos de interesses ligados à indústria, associações políticas, cívicas e sindicatos. A abertura à modernidade e à ocidentalização trouxe consigo os ideais modernos e ocidentais. Importava agora gerir estes grupos de interesse desta sociedade multifacetada, evitando criar descontentamento. Assim, este período Taisho é como que uma janela de calma em meio a um século de guerra. A opinião popular tornou-se contra a militarização do estado e, pode dizer-se, este foi um tempo de democracia florescente, onde mais partidos políticos emergiram, bem como uniões de trabalhadores, greves, ideias liberais, sufrágio universal para homens com mais de 25 anos, enfim, uma sociedade japonesa cada vez mais consciente dos seus direitos. 


A prioridade do regime Taisho era, assim, as questões internas, e não as políticas expansionistas. Era colocada mais ênfase nas políticas de cooperação internacional e não nas de agressão. Houve um corte nas despesas militares, com redução de armamento e limitação da sua presença militar no Pacífico. Em 1926 o Japão entra na Sociedade das Nações, ainda que não consiga fazer passar uma cláusula de igualdade racial, o que não foi nada bem recebido em casa, com protestos e sentimento de injustiça. O Japão ainda não era visto como um igual. Ser moderno parecia não chegar, havia que manter a identidade.
Este pacifismo a que se assistiu na década de 1920 levou a uma tensão com as elites militares, que consideravam que o esforço de construção de um império estava posto em causa. Na década de 1930 as forças militares vão, então, tentar retomar o poder. Emergem grupos ultranacionalistas e sociedades paramilitares. Para agravar, tudo isto coincide com uma degradação do regime parlamentar e partidário. O sentimento da sociedade é que este regime havia ficado aquém das exigências e expectativas dos cidadãos, levando a insatisfação entre a população. Assiste-se a um gradual afastamento entre a população e o regime parlamentar partidário. Este regime teve ainda uma falha que lhe foi fatal: a sua relação de hostilidade para com o aparelho militar. Com efeito, com a redução do efectivo militar existiam muitos oficiais sem ninguém para comandar. Foram então colocados a dar aulas / formação em academias militares, onde tiveram a oportunidade de passar aos seus formandos toda uma ideologia nacionalista, fazendo a apologia do grande Japão. Daqui saíram uma série de jovens militares japoneses que formaram grupos de acção directa que destabilizaram internamente a sociedade, perturbando-a, levando à declaração da lei marcial.
Entendido que o parlamentarismo tinha os seus defeitos e que a democracia não conseguia responder aos problemas sociais, só um regime autoritário e militarizado serviria. O Japão teria de retomar a sua pujança e seguir o caminho do imperialismo. O exército começa a ser visto como o único elemento de ordem na sociedade e o único que pode salvar o país do caos em que se encontrava. Para isso muito contribuiu o facto de o poder militar ter autonomia face ao poder político, garantida pela constituição de 1889. 



Eram tempos da Restauração Shoa, em que a educação vai ser usada como um mecanismo de fortalecimento de uma forma de nacionalismo centrada na figura do imperador. O imperador era agora Hirohito, e a ele competia-lhe, nesta segunda restauração imperial, reiniciar a expansão imperial. A necessidade de matérias primas levou à opção pela ocupação de territórios fundamentais para o crescimento e expansão do Japão. É neste contexto que acontece o Incidente da Manchuria. O Japão tinha assegurado o controlo dos caminhos de ferro do sul da Manchuria, considerados necessários para a deslocação de mercadorias. Há um atentado a uma destas linhas, impedindo a circulação, e o Japão hiperbolizou este incidente dizendo que a China havia tentado perturbar os interesses japoneses. Há quem defenda, no entanto, que este atentado foi criado pelo próprio exército imperial japonês, no sentido de ser colocada a culpa nos chineses, e dai desenvolvido um pretexto para se agir. Os japoneses decidem, então, invadir e ocupar a Manchuria e em 1931 é criado o estado fantoche Manchukuo. Prosseguindo um pensamento estratégico, a economia planificada é experimentada aplicar aí. É criada a ideia de que o Japão pode subsistir por si só e, em consequência, em 1932 o Japão retira-se da Sociedade das Nações, assumindo que irá garantir a paz em toda a Ásia e levar o desenvolvimento até ela, sendo o Japão o interlocutor asiático com o mundo ocidental. O messianismo mostrava-se novamente. 
O exército controlava o governo, havia uma total militarização do governo e um autoritarismo crescente na sociedade japonesa. Aos japoneses era-lhes requerido que mostrassem a sua unidade nacional. Deu-se uma repressão sobre as liberdades individuais.
Em 1937 o Japão entra em guerra com a China, tendo acontecido o massacre de Nanquim (existem diversos filmes sobre o tema, como o Nanjing! Nanjing! e as Flores da Guerra, por exemplo). O exército japonês conseguiu ocupar rapidamente importantes territórios chineses, instalando o terror e perturbando a sociedade chinesa. Mas estes não declaram a derrota, pese embora o avanço fulminante e altamente destrutivo dos japoneses. Uma desgastante guerra de guerrilha teve lugar, bastante lesiva em termos monetários para ambas as partes.  
Aos japoneses continuava a ser pedido todo o esforço der guerra, a causa devia ser colectiva e única. Os partidos são ilegalizados e é criado uma única entidade, a Associação para a Assistência da Autoridade Imperial, com função de coordenação e todo o esforço de guerra e vigilância das vozes contrárias na sociedade civil. O estado totalitário era já uma realidade.

A fase que se seguiria seria o tão desejado confronto com os Estados Unidos da América. 
O Japão teve uma ascensão impressionante, com uma expansão no Pacífico que fazia com que os americanos tivessem de dividir a sua atenção entre esta região e a Europa. Os americanos iam sendo empurrados para a guerra pelo Japão. Nos EUA a opinião dividia-se entre aqueles que defendiam que o país deveria ter uma política não activa, de espera e prudência (tese pacifista), e os outros que defendiam que perante um império ameaçador e totalitário como era o do Japão não se deviam fazer cedências, pelo que se deveria reagir imediatamente. No entanto, há que realçar que a política de contenção era benéfica para as indústrias americanas, sobretudo do aço e petróleo, centrais ao esforço de guerra japonês. Ainda assim, os americanos viram-se forçados a intervir e tomaram a decisão de decretar embargo ao Japão, sufocando-o pela ausência de matérias primas, até que os japoneses colocassem de lado as suas ideias expansionistas. O Japão faz ultimato aos americanos para que cessem o embargo, retomando o tratado comercial que os unia, para além de exigir que reconheçam a sua hegemonia asiática até 1/12/1941. Ao mesmo tempo, começam a esboçar um plano de guerra. 
Como os americanos não cederam, em 7/12/1941 dá-se o ataque surpresa a Pearl Harbour e a guerra tinha o seu início. Os japoneses começaram por ter o domínio, mas em Junho de 1942 o sentido da guerra começa a mudar. Perdem os seus dois maiores porta aviões em Midway e têm novo revés em Guadalcanal. 


Em 1944 os americanos conseguem aceder às ilhas Marshall e em Março de 1945 controlam Iwo Jima (ver filme de Clint Eastwood). A 10 de Março de 1945 dá-se o bombardeamento de Tóquio que causou um imenso desgaste na população japonesa que não terá sido inferior ao das bombas atómicas que se seguiriam em Agosto - Hiroxima no dia 6 e Nagasaqui no dia 9.    
A 15 de Agosto de 1945 o Japão rende-se, através do célebre discurso do imperador Hirohito, o qual haveria de justificar a guerra com o argumento da preservação da paz, que o império japonês teria servido para levar a paz ao mundo asiático, para o seu desenvolvimento. Mais uma vez, o providencialismo japonês em evidência.
Facto curioso, que demostra todo o sentimento de missão dos japoneses, desde há muito baseado nos códigos de honra dos samurai, foi o de que muitos recusaram acreditar que o Japão tinha perdido a guerra. Exemplo recentemente falado foi o do soldado Ononda que viveu quase três décadas na selva filipina depois da rendição, recusando-se sempre a acreditar nela. Outro exemplo é nos mostrado no filme brasileiro Corações Sujos, de 2011, acerca da mesma recusa por parte da comunidade japonesa no Brasil, atribuindo as notícias da rendição a propaganda americana.


A partir da derrota na guerra o Japão teria de tomar um novo rumo, enquadrando-se num mundo dominado pelos americanos. O objectivo passou a ser transformar o Japão numa potência económica, que pudesse até rivalizar com os americanos. E acabou por o conseguir nos anos 80. A expansão continuava, mas agora não era política, era antes económica. 
Os americanos fizeram questão na desmilitarização do Japão (que parece agora, em 2013/2014, voltar à cena) e em que o imperador renunciasse ao seu estatuto divino. Os hábitos de consumo alteraram-se e deu-se uma americanização da sociedade. O cinema foi um instrumento essencial para passar o "american way of life". Assim, o contexto nacionalista estava ausente e o estado imperial extinguiu-se. O estado não era mais uma imposição sobre os cidadãos; agora era por eles legitimado.