Cixi é uma figura incontornável na história chinesa do século XIX e princípios do século XX. Como governante do império Qing, aquele que atingiu o máximo território ao longo de toda a civilização chinesa, teve de lidar com momentos tão decisivos quanto o foram os do embate chinês com os estrangeiros, o das várias rebeliões internas e o da preparação das reformas que permitissem um abraço à modernidade.
É figura incontornável, mas também contestada. A apreciação do seu papel não é unânime. Um novo livro de Jung Chang (a autora de Cisnes Selvagens e de uma biografia de Mao) vem apresentar Cixi, a Imperatriz Viúva, como a mulher responsável por ter mudado a China. "A herança da Imperatriz Viúva Cixi foi múltipla e grandiosa. O mais importante é que ela conduziu a China medieval à modernidade. Sob a sua chefia o país começou a adquirir praticamente todos os atributos de uma país moderno: caminhos de ferro, electricidade, telégrafo, telefone, medicina ocidental, um exército e uma marinha de guerra modernos e formas modernas de efectuar o comércio externo e a diplomacia. A imprensa floresceu, gozando de uma liberdade sem precedentes e desde então indiscutivelmente insuperada. Ela abriu a porta à participação política: pela primeira vez na longa História da China, as pessoas tornaram-se "cidadãos". (...) Procurando consensos, sempre desejosa de trabalhar com pessoas de diferentes opiniões, foi líder porque se manteve no lado certo da História."
Esta é uma posição contrária ao que é muitas vezes associada a Cixi, uma mulher ignorante e supersticiosa, segundo Reginald F. Johnston, expressa no seu Twilight in the Forbidden City, inimiga dos estrangeiros e reaccionária, segundo muitos outros.
Vamos a um pouco de história, então.
Os Qing - a última dinastia da China - eram manchus, uma imensa minoria comparada com os han, "os chineses". E Cixi, nascida em 1835, era, como não podia deixar de ser, manchu. De uma família ilustre e com alguma influência, foi escolhida como uma das concubinas do imperador Xianfeng. Não era a sua preferida, nem possuía uma das categorias mais altas, mas a sua sorte começou quando lhe deu um filho varão.
O imperador morre e após uma manobra entre a imperatriz Zhen (esposa oficial) e Cixi estas conseguem ficar a governar como regentes do filho menor desta última.
Acontece que o seu filho imperador, Tongzhi, morre cedo e, pese embora toda a dor pela morte do filho, Cixi tem a oportunidade de continuar a governar por ter designado imperador um sobrinho também menor, o imperador Guangxu, que adopta como filho. De regência em regência foram mais de 40 anos de governo.
Jung Chang mostra-nos uma mulher rara, consciente do seu papel de mulher e dos ritos associados ao seu género. Por exemplo, Cixi governava atrás de uma cortina, de forma a que não fosse vista pelos homens. Dado o seu título de imperatriz viúva nunca pôde passar pela porta principal da Cidade Proibida e mesmo aqui apenas se podia movimentar por determinados espaços. Era uma apaixonada por ópera. Amava os seus Palácios de Verão. E teve uma outra paixão, essa de tipo amoroso, por um eunuco de nome An Dehai. Conta-nos Jung Chang que Cixi, para agradar ao seu amado eunuco, o presenteou com uma viagem fora da Cidade Proibida, mas que os seus rivais pela luta pelo poder, nomeadamente um seu cunhado, ao terem conhecimento disso - saídas da Cidade Proibida estavam vedadas aos eunucos - sentenciaram-no à morte. Jung Chang garante que Cixi apenas teve este amante, logo, que será mentira a tese de uns quantos que apresentam Cixi como ninfomaníaca e sexualmente depravada.
Todo o livro de Chang é uma defesa de Cixi, a qual, após leitura interessada e atenta, não é difícil de aceitar, mesmo que sempre se tenha lido que Cixi era conservadora, má e sem piedade para com os demais.
Porém, Chang não isenta Cixi de algumas responsabilidades. Embora evite a palavra "humilhação", aponta o seu papel desastroso aquando da Revolta dos Boxers, um movimento anti-estrangeiros e anti-cristão que Cixi deixou que tomasse proporções trágicas e que fez Pequim ser destruída e levou à fuga da corte para Xi'an. Diz-nos também que Cixi foi efectivamente responsável por uma dúzia de mortes, mas quase todas elas como resposta a atentados contra a sua vida. No entanto, cada um poderá concluir da forma como lhe aprouver quanto às insinuações de que terá sido ela a autora da morte da imperatriz que chegou a ser sua aliada, da morte da concubina preferida do filho - atirada viva para uma vala - ou da morte do imperador Guangxu por arsénico - para que morresse um dia antes dela própria e não pudesse, assim, ter influência na sua sucessão.
Aparte estas mortes, necessárias não apenas à conservação de Cixi no poder, mas mais importante, à forma como este poder deveria ser prosseguido, Chang apresenta-nos uma mulher interessada, com visão e abertura aos estrangeiros, uma reformista, na verdade - ao contrário da opinião mais corrente. Por seu lado, Kang Youwei, um dos responsáveis pelas reformas progressistas que ficaram conhecidas pelas "Reformas dos Cem Dias", em 1898, é nos apresentado como um homem maquiavélico, agindo por interesse dos japoneses. Diz-nos Chang que Cixi acabou com estas reformas não porque discordasse da abertura do império à modernidade, mas antes porque Kang conspirava contra a sua vida.
Cixi entraria, assim, no novo século XX disposta a mudanças que sabia existirem já no estrangeiro. Proibiu o enfaixamento dos pés, costume han, mas não manchu, abriu novas escolas e acabou com o regime de exames de mandarinato, propôs o voto e, mais importante, advogou uma nova forma de governo - a monarquia constitucional.
Todavia, morreu em 1908 quando os manchus eram já muito contestados e havia quem pedisse um república, caso de Sun Yat Sen e os seus movimentos revolucionários. Prova provada de que Cixi era a mulher que conseguia manter o império unido e de pé será o facto de este não ter durado muito mais depois da sua morte. Em 1911/12 foi implantada a república e o seu sobrinho neto, o Último Imperador retratado em filme por Bernardo Bertolucci, Puyi, foi autorizado a permanecer na Cidade Proibida até 1924, altura em que foi corrido e se refugiaria no Manchukuo. Mas isso já é outro capítulo da história.
Voltando ao livro de Jung Chang, Cixi - a Imperatriz Viúva, é uma excelente leitura para qualquer interessado em história da China ou tão somente em história em geral, uma vez que nos mostra os meandros do poder e os costumes, as cerimónias e a etiqueta na corte imperial de Cixi, também conhecida como o "Venerável Buda", contemporânea da Rainha Vitória, mas por vezes comparada à dama de ferro Margaret Tatcher, duas senhoras da Grã Bretanha, uma grande rival da China do século XIX e até XX. Mas, sobretudo, a leitura desta obra saída à estampa em 2013 (tradução portuguesa da Quetzal neste ano de 2014) dá-nos uma outra visão sobre factos já conhecidos e uma imagem totalmente benévola de uma das mulheres mais relevantes da história chinesa e mundial. No final podemos optar por uma de duas: foi Cixi uma governante dotada que manteve a dinastia viva depois de todas as agressões? Ou foi Cixi a responsável pelo colapso da dinastia?