quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cixi, a Imperatriz Viúva


Cixi é uma figura incontornável na história chinesa do século XIX e princípios do século XX. Como governante do império Qing, aquele que atingiu o máximo território ao longo de toda a civilização chinesa, teve de lidar com momentos tão decisivos quanto o foram os do embate chinês com os estrangeiros, o das várias rebeliões internas e o da preparação das reformas que permitissem um abraço à modernidade.
É figura incontornável, mas também contestada. A apreciação do seu papel não é unânime. Um novo livro de Jung Chang (a autora de Cisnes Selvagens e de uma biografia de Mao) vem apresentar Cixi, a Imperatriz Viúva, como a mulher responsável por ter mudado a China. "A herança da Imperatriz Viúva Cixi foi múltipla e grandiosa. O mais importante é que ela conduziu a China medieval à modernidade. Sob a sua chefia o país começou a adquirir praticamente todos os atributos de uma país moderno: caminhos de ferro, electricidade, telégrafo, telefone, medicina ocidental, um exército e uma marinha de guerra modernos e formas modernas de efectuar o comércio externo e a diplomacia. A imprensa floresceu, gozando de uma liberdade sem precedentes e desde então indiscutivelmente insuperada. Ela abriu a porta à participação política: pela primeira vez na longa História da China, as pessoas tornaram-se "cidadãos". (...) Procurando consensos, sempre desejosa de trabalhar com pessoas de diferentes opiniões, foi líder porque se manteve no lado certo da História."
Esta é uma posição contrária ao que é muitas vezes associada a Cixi, uma mulher ignorante e supersticiosa, segundo Reginald F. Johnston, expressa no seu Twilight in the Forbidden City, inimiga dos estrangeiros e reaccionária, segundo muitos outros.


Vamos a um pouco de história, então.
Os Qing - a última dinastia da China - eram manchus, uma imensa minoria comparada com os han, "os chineses". E Cixi, nascida em 1835, era, como não podia deixar de ser, manchu. De uma família ilustre e com alguma influência, foi escolhida como uma das concubinas do imperador Xianfeng. Não era a sua preferida, nem possuía uma das categorias mais altas, mas a sua sorte começou quando lhe deu um filho varão.
O imperador morre e após uma manobra entre a imperatriz Zhen (esposa oficial) e Cixi estas conseguem ficar a governar como regentes do filho menor desta última. 
Acontece que o seu filho imperador, Tongzhi, morre cedo e, pese embora toda a dor pela morte do filho, Cixi tem a oportunidade de continuar a governar por ter designado imperador um sobrinho também menor, o imperador Guangxu, que adopta como filho. De regência em regência foram mais de 40 anos de governo.
Jung Chang mostra-nos uma mulher rara, consciente do seu papel de mulher e dos ritos associados ao seu género. Por exemplo, Cixi governava atrás de uma cortina, de forma a que não fosse vista pelos homens. Dado o seu título de imperatriz viúva nunca pôde passar pela porta principal da Cidade Proibida e mesmo aqui apenas se podia movimentar por determinados espaços. Era uma apaixonada por ópera. Amava os seus Palácios de Verão. E teve uma outra paixão, essa de tipo amoroso, por um eunuco de nome An Dehai. Conta-nos Jung Chang que Cixi, para agradar ao seu amado eunuco, o presenteou com uma viagem fora da Cidade Proibida, mas que os seus rivais pela luta pelo poder, nomeadamente um seu cunhado, ao terem conhecimento disso - saídas da Cidade Proibida estavam vedadas aos eunucos - sentenciaram-no à morte. Jung Chang garante que Cixi apenas teve este amante, logo, que será mentira a tese de uns quantos que apresentam Cixi como ninfomaníaca e sexualmente depravada. 
Todo o livro de Chang é uma defesa de Cixi, a qual, após leitura interessada e atenta, não é difícil de aceitar, mesmo que sempre se tenha lido que Cixi era conservadora, má e sem piedade para com os demais.
Porém, Chang não isenta Cixi de algumas responsabilidades. Embora evite a palavra "humilhação", aponta o seu papel desastroso aquando da Revolta dos Boxers, um movimento anti-estrangeiros e anti-cristão que Cixi deixou que tomasse proporções trágicas e que fez  Pequim ser destruída e levou à fuga da corte para Xi'an. Diz-nos também que Cixi foi efectivamente responsável por uma dúzia de mortes, mas quase todas elas como resposta a atentados contra a sua vida. No entanto, cada um poderá concluir da forma como lhe aprouver quanto às insinuações de que terá sido ela a autora da morte da imperatriz que chegou a ser sua aliada, da morte da concubina preferida do filho - atirada viva para uma vala - ou da morte do imperador Guangxu por arsénico - para que morresse um dia antes dela própria e não pudesse, assim, ter influência na sua sucessão.
Aparte estas mortes, necessárias não apenas à conservação de Cixi no poder, mas mais importante, à forma como este poder deveria ser prosseguido, Chang apresenta-nos uma mulher interessada, com visão e abertura aos estrangeiros, uma reformista, na verdade - ao contrário da opinião mais corrente. Por seu lado, Kang Youwei, um dos responsáveis pelas reformas progressistas que ficaram conhecidas pelas "Reformas dos Cem Dias", em 1898, é nos apresentado como um homem maquiavélico, agindo por interesse dos japoneses. Diz-nos Chang que Cixi acabou com estas reformas não porque discordasse da abertura do império à modernidade, mas antes porque Kang conspirava contra a sua vida. 
Cixi entraria, assim, no novo século XX disposta a mudanças que sabia existirem já no estrangeiro. Proibiu o enfaixamento dos pés, costume han, mas não manchu, abriu novas escolas e acabou com o regime de exames de mandarinato, propôs o voto e, mais importante, advogou uma nova forma de governo - a monarquia constitucional.
Todavia, morreu em 1908 quando os manchus eram já muito contestados e havia quem pedisse um república, caso de Sun Yat Sen e os seus movimentos revolucionários. Prova provada de que Cixi era a mulher que conseguia manter o império unido e de pé será o facto de este não ter durado muito mais depois da sua morte. Em 1911/12 foi implantada a república e o seu sobrinho neto, o Último Imperador retratado em filme por Bernardo Bertolucci, Puyi, foi autorizado a permanecer na Cidade Proibida até 1924, altura em que foi corrido e se refugiaria no Manchukuo. Mas isso já é outro capítulo da história.
Voltando ao livro de Jung Chang, Cixi - a Imperatriz Viúva, é uma excelente leitura para qualquer interessado em história da China ou tão somente em história em geral, uma vez que nos mostra os meandros do poder e os costumes, as cerimónias e a etiqueta na corte imperial de Cixi, também conhecida como o "Venerável Buda", contemporânea da Rainha Vitória, mas por vezes comparada à dama de ferro Margaret Tatcher, duas senhoras da Grã Bretanha, uma grande rival da China do século XIX e até XX. Mas, sobretudo, a leitura desta obra saída à estampa em 2013 (tradução portuguesa da Quetzal neste ano de 2014) dá-nos uma outra visão sobre factos já conhecidos e uma imagem totalmente benévola de uma das mulheres mais relevantes da história chinesa e mundial. No final podemos optar por uma de duas: foi Cixi uma governante dotada que manteve a dinastia viva depois de todas as agressões? Ou foi Cixi a responsável pelo colapso da dinastia?

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A Imagem Que Falta, de Rithy Panh


A Imagem Que Falta, no original L'image manquante, é um filme de 2013 de Rithy Panh.
Já por aqui (http://estudanteasiatica.blogspot.pt/search?q=Panh) falámos desde cambojano.
Os seus filmes são todos muito pessoais, mas este é declaradamente autobiográfico. Traz-nos as memórias da sua infância, quando a partir dos 13 anos, depois de vida pacata na capital Phnom Penh, é levado juntamente com a sua família para os campos de trabalho, com o objectivo de re-educar as pessoas imbuindo-as do espirito revolucionário socialista. Eram os tempos da ascensão do Khmer Rouge de Pol Pot. O terror dominava, com torturas em massa, muita crueldade e fanatismo por parte de quem nesses anos 70 do século passado tomou o poder.
Diz-nos o narrador, de forma melodiosa, tomando a vez de Rithy Panh:
"Há tantas imagens no mundo, que acreditamos ter visto tudo. Pensado tudo. Há muitos anos que procuro uma imagem que falta. Uma fotografia tirada entre 1975 e 1979 pelos Khmers vermelhos, quando dirigiam o Camboja. Claro, por si só, uma imagem não prova o crime em massa; mas faz pensar; faz meditar. Ajuda a construir a história. Procurei-a em vão nos arquivos, nos documentos, nas aldeias do meu país. Agora sei: essa imagem deve faltar; e não a procurava – não seria obscena e sem significado? Então fabrico-a. O que eu ofereço hoje não é uma imagem, ou a busca de uma única imagem, mas a imagem de uma busca: aquela que o cinema permite. Algumas imagens devem continuar a faltar, devem sempre ser substituídas por outras: nesse movimento encontra-se a vida, o combate, a pena e a beleza, a tristeza dos rostos perdidos, a compreensão daquilo que existiu; por vezes a nobreza, e até a coragem: mas o esquecimento, nunca."


Ao longo do filme documentário, Panh vai dando forma às suas memórias de uma maneira magistral. Trabalhando com um escultor, filma as cenas com modelos de figuras de barro. Tal como um Buda a quem se ora, fala e chora, ele pretende que estas figuras possuam igualmente uma alma. São elas o veículo de transmissão das suas memórias e este seu acto de recordar funciona como uma forma de resistência, para além de tentar entender a natureza do crime perpetrado contra milhões de cambojanos. 
Rithy Panh perdeu toda a sua família próxima nos campos de trabalho. Felizmente há esperança e a humanidade não está só presente nos seus pequenos bonecos de barro, está também na sua grande sensibilidade em nos mostrar as suas sofridas memórias.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Genji Monogatari - O Romance de Genji

Uma das mais celebradas obras literárias de todos os tempos, por muitos referido como o primeiro romance do mundo, o Genji Monogatari foi escrito no início do século XI por Murasaki Shikibu (ou, pelo menos, a ela se atribui esta obra).
Nessa altura vivia-se a época Heian no Japão, uma das mais requintadas e iluminadas. Também a literatura viveu nesta época uma verdadeira explosão, expressando-se os autores sob diversas formas e, mais interessante ainda, as mulheres tinham também a oportunidade de o fazer. Claro que as letradas eram mulheres da corte, que viviam fechadas, daí que o género que mais relevo teve foi o dos diários - os nikki.
No entanto, mais interessante e incrivelmente, esta época Heian legou-nos o referido Genji Monogatari, escrito por uma mulher da corte que nos deixa a pensar como poderá ter experienciado tanto na sua vida para nos contar o que conta (um pouco à semelhança da Emily Bronte no seu O Monte dos Vendavais, mas a lady Murasaki uns quantos séculos antes). 
A história é a dos amores de Genji, o filho de um imperador com a sua concubina preferida. A sua mãe morre cedo e ele gravita na corte, sendo por todos admirado, quer pela sua beleza como pelo seu temperamento.

Da leitura do Genji fica a dúvida: era ele um sedutor ou um predador? 
A figura do Genji lembrou-me o Petchorin de Lermontov no seu "Um Herói do Nosso Tempo". Mas ao invés deste último, o Genji não parece ter quaisquer pudores nos seus amores e na forma como age com as mulheres. Petchorin, esse, ao menos confessava que as suas amantes ao fim de um tempo o passavam a entediar e, por isso, os as tratava de forma desagradável ou as abandonava pura e simplesmente. Murasaki, por seu lado, faz questão de nos dar a ler e ver que o seu príncipe garantia a atenção até ao fim dos seus tempos a qualquer mulher a quem tinha catrapiscado, bonita ou feia (se bem que o que interessava então era mais se a caligrafia das damas era distinta). Mas isso, aos tempos de hoje não chega, é peninha, não é amor, nem sequer respeito. Ou seja, Petchorin era declaradamente mau e sem escrúpulos, mas Genji parece igualmente egoísta e vaidoso, um cínico. Ponto.


Voltando ao livro Genji Monogatari, à volta da corte Heian é-nos contado como se entretinham os homens e as mulheres. Estas não saíram dos espaços privados. E não falavam de política. Aliás, a dado passo, quando diz que fulano vai tomar o poder, a autora escreve mesmo que pede desculpa por estar a entrar nesse tema que não é para mulheres. 
Os temas acerca do qual gira o Genji Monogatari são a caligrafia, a composição de poemas, a contemplação da natureza, a impermanência das estações (tema caro aos japoneses ao longo da sua história) e passatempos como a arte de manejar o pincel, de jogar o go, de tocar koto, flauta e alaúde. Requinte, em resumo.


Alguns exemplos:

"A manhã do primeiro dia do Ano Novo anunciou-se esplendorosa, sem uma única nuvem à vista. Em todos os jardins. Dos mais humildes aos mais sofisticados, a erva verde começava a despontar por entre as grandes manchas brancas de neve e as copas das árvores apareciam envoltas numa bruma que pressagiava a pronta chegada da Primavera e o desabrochar dos corações."

Acerca de um livro que Murasaki, a mulher de Genji, entendia que a sua enteada deveria ter lido, o príncipe respondeu: "Não vejo que utilidade pudessem ter para a instrução da menina! Aliás, seria de mau tom que uma mulher traísse as suas preferências manifestando um gosto exclusivo por uma única arte, tal como seria desagradável se fosse completamente ignorante em todos os domínios. Quanto ao carácter, conviria que fosse segura e senhora de si, sob uma aparência afável e amena..."

"Chegou o décimo primeiro mês, o mês das geadas, com a sua neve e o seu granizo; mas enquanto a neve derretia noutros lugares, ali, à sombra das artemísias e dos amores-de-hortelão que, de manhã à noite, a protegiam do sol, ela acumulava-se em camadas espessas, e no meio dessa neve que fazia pensar na Montanha Branca em Etchu, e que nem sequer era pisada por aqueles que ali passavam ao seu serviço, a Princesa definhava, apática."

Ao longo da obra são experimentados vários poemas, uma vez que, como atrás se referiu, esse era um passatempo que ocupava os elementos da corte Heian. Um exemplo:

"Se o vento tiver de seguir
Ao encontro da união
Dos vossos pensamentos
Oxalá eu já tenha decidido
Desaparecer em fumo"

Outro:

"Enquanto errava tristemente
Por ente mares e montes
Então eram para quem
As lágrimas inesgotáveis 
Cuja torrente me submergia"