Sobre a matéria dos direitos humanos, mas não só, existe um livro português que merece muito a pena ser lido: A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen, de Raquel Vaz Pinto.
Podia ser, mas não é nesse livro que me baseio para escrever o corrente post, antes noutras leituras indicadas pelo professor da cadeira de Sistemas Políticos Comparados da Ásia Contemporânea.
Os direitos humanos têm como origem directa as atrocidades da II Grande Guerra Mundial, as quais levaram a um compromisso internacional para o conceito e a prática dos direitos humanos universais. Assim, em 1948 a ONU adoptou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual servia principalmente como um manifesto.
Há que ter em conta, porém, que já antes, no século XVII, os europeus vinham colocando tanta ênfase nos direitos como nos deveres e que a questão tem a ver com a modernidade e com a emergência da classe média, a qual encontrou nos direitos humanos argumentos contra os privilégios aristocráticos.
Podemos, assim, considerar, no que aos direitos humanos diz respeito, que a sua mãe é a moral liberal e a filosofia política (ou seja, o iluminismo francês e o pensamento liberal inglês) e o seu pai a lei internacional e a revolução (a revolução republicana francesa e a primeira revolução da independência americana).
Estas ideias sobre estes direitos emergiram, foram criados ou descobertos primeiro na Europa, não porque esta fosse mais virtuosamente superior, mas porque os estados modernos e o capitalismo apareceu primeiro aqui.
Ainda no plano teórico, encontramos duas posições relativamente aos direitos humanos. Uma universalista, que defende que os direitos humanos são derivados da essência humana por si, ou seja, cada pessoa tem direitos como indivíduo. Outra relativista, que rejeita as teses universalistas como sendo naives, faltando-lhes validade empírica, sendo ahistóricas e, pior, culturalmente imperialistas. Dizem que, historicamente, as diferentes sociedades tiveram diferentes noções de direitos, e que os direitos individuais não são dados por Deus ou evidentes por si, antes são uma construção histórica, não sendo, por isso, universais, mas valores ocidentais particulares mascarados de conceitos universais.
Foi no contexto de Francis Fukuyama, declarando que havíamos alcançado o "fim da história" com a vitória da democracia, mercados livres e ideais ocidentais, e de Samuel Huntington, com a sua tese de que o mundo estava a entrar num "choque de civilizações", que alguns intelectuais e governos na Ásia Oriental, Rússia e Médio Oriente começaram a subscrever a tese relativista.
É aqui que entra a Ásia, em especial a tese dos "valores asiáticos". Os valores asiáticos valorizam a família sobre o indivíduo, a harmonia sobre o conflito, a disciplina e a deferência para com a autoridade sobre a auto-afirmação, o bem estar sobre a liberdade.
A Declaração de Banguecoque, de 1993, veio desafiar a interpretação dominante da comunidade dos direitos humanos ao dizer que a sua aplicação tem de ser considerada no contexto de um processo dinâmico e crescente de normas internacionais, tendo em conta o significado das particularidades nacionais e regionais de backgrounds históricos, culturais e religiosos. Ou seja, reclama que as circunstâncias particulares de uma política têm de ser levadas em conta na forma de determinar como um particular direito é aplicado. Diferentes circunstâncias implicarão diferentes preocupações morais.
E, depois, vem a questão do problema com a palavra "direitos" e "humano". Na China não existe um equivalente exacto à palavra "direitos" e mesmo a palavra "humanos" é traduzida de diferentes formas. Por outro lado, os ensinamentos confucionistas (matriz que influencia os países da Ásia Oriental) acerca das relações morais enfatizam uma hierarquia vertical na sociedade e tendem a ver a pessoa no contexto de uma rede social em vez de uma individual. Ainda, o conceito de lei também é entendido de forma diferente. A sociedade confucionista era governada mais por formas de decoro e até hoje os chineses receiam a lei porque ela vinha de um instrumento arbitrário nas mãos de governantes. Assim, ao mesmo tempo que os chineses conseguiram articular desde cedo ideias sobre dignidade humana e igualdade, não conseguiram estabelecer um sistema político que as protegesse, precisamente por o poder estar centralizado nas mãos do monarca em vez de ser partilhado com outros. Nestas circunstâncias, a doutrina confucionista de governo benevolente desde cima era insuficiente para garantir os direitos individuais abaixo.
Não obstante, o governo chinês elaborou em 1991 o White Paper em que declara explicitamente ser a favor dos direitos humanos, os quais estão implícitos na sua Constituição.
Mais, o apoio a certos direitos humanos pode ser encontrado nos escritos de vários pensadores confucionistas ao longo dos tempos, muitos países da Ásia Oriental foram rápidos a aprovar os direitos humanos e a reclamá-los como seus e muitos países influenciados pelo confucionismo demonstraram que a observância às práticas democráticas e direitos humanos não são incompatíveis e podem ser adaptados.
Ou seja, questões de soberania, desenvolvimento - note-se que a China coloca mais ênfase nos direitos económicos e sociais, com o argumento de que o país se deve focar nas questões de desenvolvimento económico, sobrevivência e subsistência, ao contrário dos ocidentais que colocam mais ênfase nos direitos civis e políticos - e concepções tradicionais de ordem social não absolvem os governos asiáticos de implementar do direitos humanos reconhecidos. Há que ter em conta que nós temos a capacidade para criar e mudar a nossa cultura e que a diversidade cultural é um valor em si mesmo. Os direitos humanos internacionais não obrigam ou sequer encorajam os asiáticos a prescindir da sua cultura. No entanto, os direitos humanos também dão poder às pessoas para modificar ou rejeitar partes da sua cultura tradicional. A Índia é um bom exemplo e a sua Constituição proíbe muitas práticas tradicionais e religiosas, como o discriminatório e degradante tratamento das castas mais baixas.
E depois temos o (não) papel do Japão nesta matéria de direitos humanos. Por-se-ia esperar que o país pudesse assumir um papel de líder em promover e proteger os direitos humanos na região. No entanto, a prática do proselitismo é estranha aos japoneses - a modéstia é um alto valor. Também não são legalistas, e a diplomacia para eles é somente bilateral. E, mais decisivo, talvez, a culpa da guerra e dificuldades em lidar com isso e com o estatuto de antigo colonizador faz com que o Japão não assuma o papel de líder na Ásia, particularmente em áreas onde a ética e a moral estão envolvidas.
À laia de conclusão, alguns factores que explicam a atitude algo negativa para com os direitos humanos. Desde logo, a Ásia é vasta e diversa e carece de uma base comum que faz com que seja difícil de aceitar noções comuns de direitos humanos. Excepto pela sharia para o mundo muçulmano, a cultura asiática não tem sido tão legalista como a europeia e americana. Muitos governos têm sido autoritários e opressivos. Uma baixa literacia e conhecimentos insuficientes dos direitos humanos fundamentais têm mantido muitos alheios a um envolvimento na luta pelos direitos. A pobreza da maior parte das nações faz com que a primeira preocupação dos lideres seja prover a subsistência e melhorar a situação material, mantendo a integridade nacional. Por fim, o apoio dado pelas superpotências durante a guerra fria a governos autoritários e opressivos ajudou a que os governos não olhassem para a importância dos direitos humanos.
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